Por Adriano Benayon*
Anular a “privatização” da Vale do Rio Doce (CVRD) não é apenas indispensável à segurança nacional. Exige-o a honra do País, pois estão cientes da vergonha que é essa alienação todos que a examinaram sem vendas nos olhos postas por egoísmo, ignorância ou submissão ideológica.
A negociata causou lesões impressionantes ao patrimônio nacional e ao Direito. Mas políticos repetem desculpas desinformadas ou desonestas deste tipo: 1) houve leilão, e o maior lance ganhou; 2) o contrato tem de ser respeitado; 3) o questionamento afasta investimentos estrangeiros.
Na “ordem” financeira mundial há hierarquia, e o leilão foi de cartas marcadas. Levaria a CVRD quem “atraísse” os fundos de pensão das estatais, através do Executivo federal e da corrupção. José Pio Borges foi do BNDES para o Nations Bank e depois Bank of America, que chegou a ter 20% da VALEPAR.
Conforme aponta Magno Mello, um dos escândalos marcantes da história da PREVI foi o investimento na privatização Vale Rio Doce, “quando a PREVI era gerida por uma diretoria meio petista e meio tucana.” [1]
Os fundos de pensão (39,3%) e o INVESVALE dos funcionários da CRVD (4,5%) entraram com 44% na VALEPAR, a controladora da CVRD comandada pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que Steinbruch “ganhara” de FHC, sendo empregador do filho deste. A CSN pôs 25%: 10% vindos do exterior [2] e 15% emprestados pelo BRADESCO.
Do consórcio fizeram parte, além da CSN: Opportunity (Citibank) com 17%; Nations Bank, então 4º maior banco dos EUA, com 9%. Outro consórcio (Votorantim e Anglo-American) desistiu.
Não foram pagos pelo controle da VALE sequer os R$ 3,338 bilhões do lance ganhador: a) a União aceitou, pelo valor de face, títulos comprados no mercado por menos de 10% desse valor; b) o lance mínimo era R$ 2,765 bilhões, e o ágio de 20% (R$ 573 milhões), compensável por créditos fiscais; c) o BNDES financiou parte da operação com juros preferenciais e adquiriu 2,1% do capital votante.
A União mantinha 34,3% do capital da CVRD, mas o objetivo era alienar o controle de qualquer jeito. Em 2001, por ordem de FHC, o Tesouro torrou, na bolsa de Nova York, 31,17% de suas ações ordinárias com direito a voto e a eleger dois membros do conselho de administração.
O patrimônio arrebatado ao País vale 3 trilhões de reais (1.000 vezes a quantia do leilão) ou grandes múltiplos disso, considerando as reservas de metais preciosos e estratégicos, muitos deles exploráveis por mais de 400 anos, pois é impossível projetar o preço dessas riquezas sequer para um mês. Que dizer de 5.000 meses?
Os recursos reais tendem a valorizar-se, como mostram: 1) sua crescente escassez relativa e a alta de preços nos últimos anos; 2) a hiperinflação de ativos financeiros em dólares e euros, a qual está detonando o colapso das moedas. Enquanto os recursos reais são finitos e essenciais à vida, as moedas são inflacionadas sem limites, por meio eletrônico, ao sabor do abuso de poder de concentradores financeiros e bancos centrais.
Diz Comparato: “Ao abandonar em 1997 o controle da Companhia VALE do Rio Doce ao capital privado por um preço quase 30 vezes abaixo do valor patrimonial da empresa e sem apresentar nenhuma justificativa de interesse público, o governo federal cometeu uma grossa ilegalidade e um clamoroso desmando político. [3]
A relação de “quase 30 vezes”, reflete o patrimônio, em 2005, na contabilidade da empresa, mas não, a realidade econômica, que aponta para 10.000 vezes ou mais.
Ainda, Comparato: “Em direito privado, são anuláveis por lesão os contratos em que uma das partes, sob premente necessidade ou por inexperiência, obriga-se a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta (Código Civil, art. 157). A hipótese pode até configurar o crime de usura real, quando essa desproporção de valores dá a um dos contratantes lucro patrimonial "que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida" (lei nº 1.521, de 1951, art. 4º, b). A lei penal acrescenta que são co-autores do crime "os procuradores, mandatários ou mediadores”.
A desproporcionalidade da prestação é colossal. Se não estava presente a necessidade nem a inexperiência, resulta claro que os motivos foram torpes e implicam, com mais forte razão, a anulação do negócio. Ademais, a parte lesada, o povo brasileiro, foi traída pelos mandatários, que firmaram o contrato e o tramaram, até mesmo ocultando dados no edital.[4]
Mais que anulável, o contrato é nulo de pleno direito. Estabelece o Código Civil, no Art. 166: “É nulo o negócio jurídico quando ...III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito.”
O que poderia ser mais ilícito que infringir a Constituição Federal e lesar o patrimônio público, de forma deslavada? A CF, no art. 23, I, estabelece que é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios "conservar o patrimônio público". A lei de licitações, 8.666/1993, subordina a alienação de bens da administração pública à existência de interesse público devidamente justificado" (art. 17). Também torna o leilão inconstitucional não ter sido autorizada pelo Congresso a exploração de recursos minerais na faixa de fronteira (§ 2º do Art. 20 da CF). O mesmo quanto ao controle sobre áreas maiores que 2.500 hectares (inciso XVII do Art. 49 da Constituição).
Que investimentos são os que Lula teme perder? São do tipo dos que assumiram por menos de R$ 1 bilhão o controle da VALE, detentora das mais ricas reservas minerais do Mundo e que lucra R$ 15 bilhões por ano,[5] mesmo exportando, a preço vil, matéria-prima bruta ou com baixa agregação de valor.
Atos lesivos foram cometidos antes de 1997, como os contratos de longo prazo para exportar, a preços ínfimos, minério de ferro a siderúrgicas japonesas e outras. Assim, para desfazer as privatizações fraudulentas é necessário afastar a concentração financeira, sem o que não se desprivatiza o próprio Estado.
É tarefa intrincada identificar a origem do capital controlador da CVRD. “A empresa que aportou capital nessa privatização foi a CSN Corp., filial da CSN no Panamá, montada com capital do Nations Bank. A CSN Corp. entrou na história como laranja do Nations Bank", afirma Magno Mello. Segundo ele, outra parcela do grupo privado foi formada pelo fundo de pensão Opportunity, sediado nas ilhas Cayman, que faliu. Outra foi constituída pelo fundo Sweet River (40% de capital do Nations Bank). Outros 40% vieram do mega-investidor George Soros. ‘Esse era o capital nacional que Aloizio Mercadante estava defendendo’.” [6]
O BRADESCO estava impedido, pela lei de licitações, de participar do consórcio por ser um dos avaliadores, mas financiou R$ 500 milhões para a CSN, além de possuir 17,9% do capital dessa ex-estatal.[7] À época já era estreita a relação da transnacional japonesa MITSUI com o BRADESCO.
Hoje a BRADESPAR, sua subsidiária, figura como controladora da VALEPAR, com 17,4%, através da Elétron, que adquiriu. Uma subsidiária da MITSUI nos EUA seria o principal acionista estrangeiro, com 15%. Os fundos de pensão (LITEL- e LITELA-Participações) têm quase 60% das ações da VALEPAR, mas, incrivelmente, não a dirigem.
À VALEPAR pertencem 53,3% das ações ordinárias, com direito a voto, da CVRD, e 32,5% do capital total. Deste 43,2% é de investidores estrangeiros, e apenas 18,9% de brasileiros. A BNDES-Participações tem 4,2 %, pois o BNDES comprou da INVESTVALE, em novembro de 2003, por R$ 1,5 bilhão, 8,5% das ações da VALEPAR..
Em 2003 houve o descruzamento das ações da CSN e do BRADESCO, mas permaneceu a ilegal presença deste na VALEPAR. Ele foi financiado pelo BNDES em R$ 859 milhões (US$ 243 milhões), com que criou a BRADESPAR e comprou parte das ações do Sweet River da mineradora anglo-australiana BHP Billinton, sócia da CVRD na VALESUL (alumínio).
A PREVI adquiriu a outra parte por US$ 297 milhões. Ademais de não se saber a quem mais, afora a MITSUI, o BRADESCO está associado, 28,6 % das ações ordinárias da CVRD são de estrangeiros, e 39,1% não têm donos identificados (ADRs - American depositary receipts na Bolsa de Nova York e na BOVESPA). Das ações preferenciais 60,8 % são de estrangeiros.
[1] Mello, Magno: A Face Oculta da Reforma da Previdência’, Brasília 2003.
[2] A CSN, da têxtil Vicunha, não tinha crédito próprio. Agiu como laranja.
[3] Comparato, Fábio Konder: “Um atentado contra o patrimônio nacional”, artigo publicado na Folha de São Paulo, em 02.09.2007.
[4] Entre outras, houve a omissão de 9,7 bilhões de toneladas de minério de ferro, diferença entre o reportado pela CVRD à Securities Exchange Commission (EUA) e o constante do edital da privatização. Há processo penal contra FHC e outros réus.
[5] De 1998 ao 1º semestre de 2007 os lucros da VALE somaram R$ 50,5 bilhões.
[6] Mello, Magno, op.cit.
[7] Além de ter obtido informações privilegiadas, o BRADESCO, às vésperas do leilão, financiou debêntures de empresas que controlavam a Elétron (VALEtron e a Belapart, ligadas ao Opportunity e ao Sweet River).
*Adriano Benayon é Doutor em Economia. Autor de “Globalização versus Desenvolvimento”. Editora Escrituras: www.escrituras.com.br