...em
vez de as próprias companhias obterem as licenças para seus produtos e
colocá-los no mercado, muitas vezes, quem cuida desse processo é uma empresa
especializada em um serviço conhecido como “barriga de aluguel”. Elas dão
entrada no pedido, aguardam o tempo necessário e, depois, “geram” registros
para futuramente repassá-los para outras companhias, seja por compra, venda ou
transferência. nos últimos 20 meses, 326
registros de comercialização de agrotóxicos mudaram de dono no país. objetivo é burlar o longo processo percorrido
para se colocar um agrotóxico no mercado. O produto precisa passar por análise
do Ministério da Agricultura, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama),
rito que pode chegar a 10 anos. Enquanto isso, o processo de transferência de
titularidade tem prazo legal de até 120 dias, segundo o Ministério da
Agricultura.
Os neoliberais "em
Chicago" ministrando curso de commodities agrícolas
para o Brasil!
CRIME CONTRA A HUMANIDADE!
"(...)A gente está destruindo o Brasil, exportando água, exportando solo para fora do Brasil, e estamos mais ricos por causa disso? A desigualdade diminuiu depois de anos de destruição do Cerrado, da Amazônia? O ciclo do ouro, o ciclo do café, o ciclo da borracha, o ciclo da soja, todos esses ciclos com a mesma estrutura, a saber: o Brasil como exportador de produtos primários para as metrópoles capitalistas. Estamos na mesma posição em que estávamos em 1500. É uma colônia de exportação de commodities e contaminadas pelo agrotóxico.
Agora é commodities high-tech, né? Não é mais o braço escravo, não é mais o índio amarrado, agora é a colheitadeira, é o grande trator, é a feira de Barretos.
O Brasil continua sendo uma colônia que consegue o prodígio de ser uma auto-colônia, colônia dos outros e a colônia de si mesmo.(...)" - Viveiros de Castro-trechos
12 OCT 2019 - 10:04 BRT
Um dos mais influentes antropólogos do
planeta, Eduardo Viveiros de Castro não
se dá tanta importância. “Talvez seja uma conjunção aleatória, um contingente
de fatores que fez com que eu me tornasse uma pessoa em evidência dentro da
academia e, depois, fora”, diz com a franqueza habitual.
Escolhido pelos leitores aliados da Agência Pública, parceiro do EL
PAÍS, como entrevistado do mês, Viveiros de Castro recebeu na semana
passada nossos repórteres para uma conversa de mais de duas horas, em seu
apartamento, no Rio de Janeiro. A sua primeira entrevista após a eleição
de Jair Bolsonaro havia
sido aceita com uma dose de contragosto. “Não tenho visões especialmente
inéditas e profundas sobre tudo o que está acontecendo. Estou apenas perplexo,
como todo mundo”, disse, ao descrever o cenário atual como “um momento em que a
palavra perdeu o fôlego, inclusive o valor. A gente não consegue mais
distinguir a verdade da mentira”. Para ele, a verdade se tornou inacreditável.
Apesar das necessárias ressalvas, Viveiros de
Castro conversou com a Pública sobre diferentes temas da atualidade — da
resistência indígena à destruição da Amazônia. Do Governo Lula-Dilma a
Bolsonaro e os militares. Da reforma agrária a Belo Monte. Do terraplanismo à mamadeira de piroca. Da
questão climática ao fim do mundo. No início do papo, ao tentar classificar sua
perplexidade, ele afirma: “A gente chegou numa situação no Brasil em que você
tem que usar um vocabulário da psicopatologia”. A seguir, os principais trechos
da entrevista.
MAIS
INFORMAÇÕES
Pergunta. Um sujeito que
o senhor admira, que é o Claude Lévi-Strauss, tem uma frase assim: “Meu
desejo é um pouco mais de respeito para o mundo que começou sem o ser humano e
vai terminar sem ele. Isso é algo que sempre deveríamos ter presente”. Até que
ponto o que ele diz se refere ao momento que a gente está vivendo?
Resposta. Essa frase está
num livro publicado em 1955, Tristes trópicos, o livro talvez mais conhecido dele fora
da antropologia mais especializada. É um livro que reflete várias coisas, desde
um certo pessimismo filosófico muito importante dentro da imaginação
lévi-straussiana, como uma observação, em primeiro lugar, absolutamente
verdadeira. É interessante como é uma observação que é, digamos assim, uma obviedade,
porque o mundo começou sem o homem e vai terminar sem ele, e, ao mesmo tempo é
uma obviedade que precisa ser lembrada. Primeiro porque é em cima do
esquecimento dela que muitas vezes se constroem vidas e, em segundo lugar,
porque nesse momento em particular algo que foi dito há 50 anos, 60 anos ganha,
de repente, uma atualidade até certo ponto inesperada.
E mesmo que o Lévi-Strauss já tenha advertido para
o fato de que a marcha da chamada civilização ocidental, necessariamente,
envolvia uma destruição de suas próprias condições materiais de existência e,
portanto, ela era um projeto civilizacional suicida, ele frequentemente
localiza mais especificamente na civilização ocidental de origem europeia essa
ideia de que é uma civilização que consome quantidades absurdas de matéria e
energia, e que está produzindo entropia, está produzindo desorganização do
cosmos terrestre e que, portanto, não poderá prosseguir dessa forma. Ela, na
verdade, está colaborando para o fim da espécie, num certo sentido.
Essa ideia de que o mundo começou sem o homem e
que, sabemos bem, vai terminar sem ele, toda questão diz respeito a quão rápido
vai ser esse término. Vai terminar quando sem ele? A impressão que se tem é que
esse término está se aproximando de nós com mais velocidade do que se
imaginava. Mas, ainda que isso seja verdade, a ideia de que a crise atual,
a mudança climática, a crise de todos os
sistemas geofísicos, geoquímicos, do planeta, implique, necessariamente, a
desaparição da espécie humana, talvez seja um pouco exagerado dizer isso.
Porque é provável que não desapareça toda a espécie e que as condições de vida
vão ser muito mais difíceis do que elas foram nos últimos 10.000 anos, que é o
tempo que se tem de história, o chamado Neolítico da história, essa fase
climática dentro da qual todas as coisas das quais nós nos orgulhamos enquanto
civilização surgiram: escrita, cidade, artes etc.
E essas condições vão, muito provavelmente,
implicar um choque populacional na espécie que não se sabe exatamente quando,
como e o que vai acarretar. Então, a frase do Lévi-Strauss é uma frase sombria,
sobretudo, porque ganhou uma urgência, uma qualidade que talvez não tivesse em
1955, e pudesse ser vista como uma frase poética — sombria, mas apenas poética.
O tempo verbal se tornou, de repente, mais complicado. Não é, talvez, “vai
terminar”, mas “está terminando”.
P. Em algumas entrevistas, já vi o
senhor declarar que é um pessimista, mas em que momento da sua trajetória o
senhor foi menos pessimista? E como o senhor se caracterizaria hoje?
R. Acho que sou pessimista, sim, em
vários níveis e de maneiras diferentes. Num certo plano, sou pessimista num
sentido que o Lévi-Strauss era pessimista ao falar que a espécie estava
colaborando com sua própria extinção, a partir dos representantes da espécie
que se consideram os mais avançados, os mais evoluídos, na vanguarda, e que são
justamente aqueles que estão contribuindo da maneira mais radical para a
deterioração das condições materiais de sobrevivência da espécie.
Em outro sentido, sou pessimista pois não vejo com
grande esperança a capacidade dos Estados-nação, dos Governos mundiais, de
efetivamente mudar com a radicalidade que se impõem as condições de existência
das sociedades avançadas — em particular, as tecnologicamente avançadas — para
que você diminua a velocidade de deterioração do sistema termodinâmico da
Terra.
Então, é um pessimismo num sentido de que não ponho
muita fé na passagem da racionalidade individual, isto é, pessoas que são
capazes de perceber que as coisas estão indo muito mal do ponto de vista das
condições de existência, para a racionalidade coletiva e, portanto, para que
movimentos sociais, governo, ONU, seja quem for,
efetivamente tomem medidas que envolvam uma mudança drástica, radical,
dramática, do modo de vida que nós consideramos como sendo o ideal e que,
entretanto, é precisamente aquele que está produzindo a destruição do planeta.
Tô falando de carro, tô falando de petróleo, tô
falando de uso de energia elétrica, tô falando do consumo de energia, seja ela
fóssil, seja ela de outras fontes, o consumo em geral, per capita,
de energia, o desperdício, produção de dejetos e assim por diante.
É nesse sentido que eu sou pessimista.
Além do que nós estamos vendo algo que ninguém
imaginava, talvez, que é uma maré fascista mundial encabeçada pela principal
potência mundial [os Estados Unidos], em
breve, segunda potência mundial. A outra [China] sempre foi o que é, há 5.000 anos,
sempre foi um regime autocrático, sempre foi um regime imperial, num certo
sentido.
O Brasil, pra mim, é um grande motivo de
pessimismo, desde o fato de nós jamais acertarmos as contas com a ditadura — é uma vergonha o Brasil não
ter feito o que fez a Argentina, o Chile... — e o fato de que nós vivemos — e
hoje está mais claro do que há dez anos — como uma democracia tutelada, consentida pelos
militares até certo ponto. Desde a proclamação da República foi mais ou menos
sempre isso que aconteceu. O que é mais patético ainda, porque saímos de uma
monarquia estrangeira para uma República tutelada pelos militares. Então,
realmente não temos muito o que comemorar.
De outro lado, esse é um país que continua marcado
por uma estrutura profunda da sua natureza, a escravidão. Que continua, de certa maneira,
girando em torno de um modo de ser, de pensar, de agir, que se contém à memória
da escravidão. Não só o racismo, mas a relação
do poder público do Governo com as populações negras, pobres, do Brasil, o
genocídio entusiasmado praticado por governantes.
E agora a gente chegou numa situação no Brasil em
que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia para falar dos que estão
no Governo. Esse governador [do Rio, Wilson Witzel] é um psicopata, esse presidente
é louco, e coisa desse gênero. Cada vez mais você vê um vocabulário… “As
pessoas estão loucas.” “Isso é loucura.” Então, o que que aconteceu para que de
repente a política tivesse virado na psicopatologia?
P. É o que me pergunto todo dia.
R. Tem que chamar um psicanalista
para fazer análise política hoje. É que nem o Reich [Wilhelm Reich, autor e
psicanalista] fez do fascismo. Para analisar
isso aqui, só uma pessoa que trabalha com questões de psicopatologia.
P. Em 2013, eu tinha 23 anos e foi
um momento de certa empolgação com o momento. E hoje se vê muito a análise —
principalmente vindo da esquerda mais petista que estava no poder — de que, de
alguma maneira, os protestos iniciaram uma onda de
acontecimentos que resultaria no Governo que está hoje.
R. Você tinha uma situação em que
o PT se comportou de
uma maneira, no meu entender, completamente equivocada. Em vez de incorporar as
bandeiras que estavam sendo levantadas em 2013, nas jornadas, ele soltou uma
Garantia da Lei e da Ordem e começou a se comportar como se estivesse diante de
baderneiros, terroristas, seja lá o que for. Com isso, ele jogou o movimento
nos braços da direita. A direita se tornou revolucionária e a esquerda virou
conservadora.
Entendendo-se o PT como um partido de esquerda, que
eu sempre achei uma associação um pouco apressada; só no Brasil se diz que
o Lula é um
personagem da extrema-esquerda, quando na verdade o PT é um partido social-democrata,
enquanto chamar o PSDB de um partido
social-democrata é um absurdo, porque é um partido de centro-direita.
O projeto do PT era, na verdade, melhorar as
condições de vida da população brasileira sem tocar nas chamadas relações de
produção e, se possível — e ele até fez isso —, sem tocar nos lucros da classe
dominante, do grande capital. Tanto é que a burguesia, os bancos, o
agronegócio, todos eles lucraram muito, se deram muito bem durante o Governo do
PT. Então, o que o PT queria era simplesmente que caísse mais migalhas da mesa
no chão para que o povo pudesse comer mais dessas migalhas. Mas nunca pensou em
pegar o bolo, dividir e entregar, redistribuir o bolo radicalmente. Você tinha
uma redistribuição moderada e, sobretudo, sem meter a mão no bolso dos ricos.
Como é que se conseguiria fazer um projeto de
melhorar as condições de vida da porção mais miserável da população brasileira
sem mexer no bolso dos ricos? Tinha que tirar de algum lugar. Você tirou de
onde? Da natureza. Das florestas, das águas. Aí aumenta desmatamento, aumenta a
exploração da Amazônia, a devastação da Amazônia, aumentam os grandes
projetos que vão destruir organizações sociais tradicionais, as populações
tradicionais.
Eu acho que o PT cometeu um erro histórico, e acho
que o principal foi o de não ter assumido o espírito das jornadas de 2013 e,
ao contrário, ter se colocado do lado da polícia, literalmente, e com isso
jogou o movimento na mão da direita oportunista e na mão da fração considerável
da classe média, que é reacionária, que sempre foi admiradora da ditadura, que
sempre saiu na rua levantando cruzes e bandeiras, na Marcha pela Família com
Deus pela Liberdade, vestindo camisa do Brasil.
Isso só tirou esse pessoal do armário, no qual eles
estavam desde o fim da ditadura e, sobretudo, depois que o PT ganhou a eleição
em 2002. Ganhou, aliás, apenas porque o PT se obrigou a fazer concessões.
A Carta aos Brasileiros do Lula,
em 2002, falou: não vamos tocar no sistema. E, apesar disso, ele [o PT] foi
apeado do governo por um golpe. Em parte por causa, evidente, da crise
econômica mundial.
De fato eu não sou especialmente otimista, acho que
a gente nunca esteve tão mal, do ponto de vista político, quanto agora. A
situação é propriamente surreal. Eu há pouco tempo fiz uma brincadeira nas
redes sociais dizendo que o sucesso nas fake news no Brasil se deve ao fato de
que a verdade se tornou inacreditável. As notícias verdadeiras são
inacreditáveis, então você acredita nas falsas.
O Senado chamou o Steve Bannon pra falar no Senado. Isso é
inacreditável. O Bolsonaro fala que o garimpo é fantástico e tem que acabar com
os índios e não sei o quê. Isso é inacreditável. Então, você tem que acreditar
em mentiras. Está mais fácil acreditar em mamadeira de piroca do que no Steve
Bannon.
P. Tem uma entrevista que o Celso
Furtado deu para a revista Caros Amigos antes da primeira eleição do Lula
[2002]. E ele disse que, da visão dele, seria uma tarefa fundamental do PT, se
eleito, tentar impedir o processo de desagregação do Brasil. O senhor já
discorreu um pouco disso, mas quais outros pecados o PT cometeu nesse caminho?
E Belo Monte?
R. Primeiro, eu queria fazer uma
ressalva. Não é nem dizer que não é o momento de fazer essas críticas, mas é questão
de dizer que perto do que está aí o PT era o paraíso, em termos de qualidade
das relações políticas, relações sociais. Aliás, com toda a picaretagem, a
mamata, a propina, a negociação no Congresso, o mensalão e tudo, que o PT fez,
não foi o primeiro partido de esquerda a fazer isso na história.
Ele fez um pacto com o diabo para poder governar, e
o diabo cobrou a conta, como sempre cobra.
Com o impeachment foi isso. Ele fez um pacto com as
forças mais reacionárias, mais corruptas do sistema político para poder
governar, e conseguiu isso até certo ponto. Dali pra frente, a conta veio. E a
conta vem da maneira mais atroz, mais absurda, essa prisão do Lula, essa
exposição do fato de que o sistema jurídico é envenenado por pessoas de má
qualidade ideológica, de má qualidade cultural e de má qualidade política.
Isso tudo, evidentemente, faz com que a gente tenha
que criticar o PT, mas dizendo “olha, vejam bem”. Lula livre pra começar — essa
eleição foi fraudada nesse sentido de que o Lula foi preso para evitar que ele
ganhasse. Nem todo mundo que votaria no Lula — e ele teria ganho em primeiro
turno — era petista, e todo mundo sabe. Assim como nem todo mundo que votou no
Bolsonaro é bolsominion, mas muitas das pessoas que votaram no Bolsonaro teriam
votado no Lula se o Lula estivesse solto.
Isso, em parte, passa por um certo imaginário
brasileiro que envolve a figura do líder poderoso, do líder salvador, que foi
transferida do Lula para o Bolsonaro, ainda que eles encarnassem figuras muito
diferentes ao representar a esperança. O Lula era, essencialmente, o pai dos
pobres, de alguma forma, o Bolsa Família, e o outro é, essencialmente, a
figura do capitão, do policial que vai matar, prender e arrebentar, como dizia
o Figueiredo. E foi o policial que ganhou.
Estou usando “o policial” para não usar outra
palavra, dos amigos dele, pessoal que sai em fotografia com ele em tudo que é
lugar. Então nós estamos numa situação de um regime criminoso. Não sei como
definir de outra forma. Não estou falando da criminalidade clássica da
política, que é a criminalidade dos contratos, dos grupos de favorecimento, que
sempre houve e que o PT também praticou, mas numa criminalidade num sentido de
porta de delegacia, criminalidade de assassinato, extorsão de populações
pobres… Essa criminalidade está no poder. Isso é uma coisa inacreditável.
E está no poder, em parte, com o apoio e, em parte,
com a perplexidade do Judiciário, que está aparelhando todo o sistema, toda a
máquina pública, com as piores pessoas possíveis.
Você tem uma espécie de critério que é simples:
dado um determinado ministério, alguma tal secretaria, quem é a pior pessoa
possível pra colocar ali? É essa pessoa que vai.
Então, você tem uma espécie de perversidade, e
perversidade quase no sentido psicopatológico mesmo, por isso que falei em
psicopatia. É uma espécie de perversidade de você colocar exatamente a pessoa
inimiga daquele tema para tocar a política de Estado sobre aquele tema.
Isso está acontecendo no meio ambiente, nos
direitos humanos, o direito da mulher, da família, está acontecendo, de certa
maneira, na economia.
P. E Belo Monte?
R. Bom, uma das grandes
divergências, um dos grandes problemas que eu tenho com o PT é Belo Monte, que
foi enfiada pela garganta adentro dos ribeirinhos, dos indígenas da região,
pelo Lula, pela Dilma. Então, eu não
consigo aceitar um partido, um governo que fez Belo Monte. Daí não se segue que
eu tenha que aceitar o que está no poder agora, muito pelo contrário, mas Belo
Monte não tem perdão.
Eu trabalhei lá, conheço lá, não tem perdão o que
eles fizeram ali. Aquilo representa uma ideia de Brasil em que, num certo
sentido, há uma continuidade em algum nível entre o projeto do PT e o projeto
desse governo no que diz respeito à relação com a Amazônia, com os povos tradicionais, com o
Brasil profundo.
Tem que modernizar, tem que civilizar, tem que
industrializar, tem que derrubar, tem que gerar renda, tem que gerar valor,
gerar emprego, e a gente ouve isso há séculos e só vê o pessoal se fodendo.
Lula livre, sim; Belo Monte, não. Belo Monte
jamais.
P. O Governo Bolsonaro elegeu alguns
inimigos diretos, seja territorialmente, seja de pessoas ou grupos sociais.
Estou falando da Amazônia e dos indígenas. Por que este governo tem tanto medo
dos índios?
R. O problema dos índios, para esse
governo e para as frações da sociedade brasileira que ele representa — em
particular, o grande capital, o agronegócio —, é que as terras dos índios não
estão no mercado fundiário. E o projeto desse governo é de privatizar 100%. Se
possível, o Brasil inteiro.
Parque nacional, reserva ecológica, todas as terras
que têm uso especial estão na mira desse governo. Daí a importância do
Ministério do Meio Ambiente para destruir os sistemas de terras protegidas e
para o ataque aos povos indígenas. Esse ataque, na verdade, exprime um desejo
de transformar o Brasil inteiro em propriedade privada.
É um Estado cujo objetivo é retirar do Estado a sua
soberania efetiva sobre seu território, ou melhor, transformar a soberania em
apenas poder de supervisão, mas entregar as terras ao capital privado, seja
nacional, seja estrangeiro.
Daí essa conversa para boi dormir dos militares:
“Ah, a invasão da Amazônia pelos estrangeiros”. Eles estão vendendo as terras
da Amazônia para um monte de proprietário estrangeiro, o problema deles não é
esse. Isso é mentira.
O problema dos índios é que as terras dos índios
são terras da União, e o objetivo do governo é privatizar. E mais do que do
governo, das classes que o governo representa, das quais ele é o jagunço,
porque é isso que ele é: o jagunço da burguesia.
O segundo motivo, acho, está numa declaração
absurda que o Mourão, o vice-presidente, deu há pouco tempo, louvando as
capitanias hereditárias e os bandeirantes, dizendo que aquilo é o melhor da
nossa origem, o melhor da nossa história, empreendedorismo e tal.
Isso soa como uma provocação, uma provocação
especificamente anti-indígena, porque ele está celebrando o genocídio
ameríndio, celebrando o bandeirante, que é uma figura que foi transformada,
evidentemente, a partir de São Paulo, em herói da nacionalidade, quando o que
ele fez, efetivamente, foi arrancar o Brasil da mão dos seus ocupantes originais.
Não conseguiu arrancar todos, ainda tem 13% aí de terra [indígena].
E o objetivo, agora, é completar o processo
iniciado com a invasão da América pelos portugueses. Isso é muito claro.
Os militares, agora, estão se identificando com a
Europa. É muito estranho, se você for olhar a composição racial das Forças
Armadas brasileiras. Não vai achar muito louro. A começar pelo Mourão, que é
mestiço de índio. Mas pelo jeito não gosta.
Então, você tem uma concepção que vê o Brasil como
um país essencialmente europeu, num sentido assim, do que é o melhor da nossa
formação, da nossa história. Como diz o Mourão, o melhor é a
Europa. É isso que ele está dizendo.
Talvez o momento culminante do filme Bacurau, que está
fazendo sucesso, é o momento do diálogo em que os gringos assassinos dizem pros
dois puxa-sacos brasileiros que eles não são brancos coisa nenhuma. O Mourão,
na verdade, estava falando como aquele motociclista: o melhor da nossa história
são as capitanias. Aí vem o gringo: “Pra começar, português nem é branco. E,
segundo, você não é nem português”. Então, bum!
E as celebrações do caráter mestiço, no meu
entender, são pura demonstração de hipocrisia. O que se chama de mestiçagem no
Brasil, o nome certo é branqueamento.
Então, você tem um ódio do não branco no Brasil,
racismo contra os negros, e um racismo dobrado, de um racismo territorial, em
relação aos índios. Essas são as razões principais, eu diria.
Viveiros de Castro foi
escolhido pelos Aliados da Pública para a entrevista do mêsAF RODRIGUES (AGÊNCIA PÚBLICA)
P. E a Amazônia?
R. A Amazônia é um objeto
imaginário, complicadíssimo no Brasil. Primeiro que a gente precisa sempre
lembrar: a Amazônia não é brasileira. A Amazônia é de nove países.
As cabeceiras, as formadoras do Solimões e de
grande parte dos afluentes da Amazônia, estão fora do território brasileiro. Se
o Peru, a Colômbia, a Bolívia resolverem fechar a
torneira, seca.
Vão sobrar os rios que são formados no Cerrado, no
Brasil central, o Xingu, Tocantins, Araguaia, Tapajós… Que estão sendo
destruídos. O Cerrado está sendo arrebentado, esses rios também estão ferrados.
O escândalo sobre a França falando da Amazônia… A
Guiana Francesa é francesa. A França é amazônica, o que vão fazer com isso?
Podemos fazer nada. Podemos tentar invadir a França, que nem a Argentina fez com as Malvinas, vai dar
super certo…
E a Amazônia tem essa coisa: você, ao mesmo tempo,
utiliza aquilo como um cartão de visitas, como um orgulho — “Olha só o verde, o
paraíso, muitas árvores…” — e, de outro lado, você quer destruir a Amazônia
para os outros não pegarem.
Então você tem aquela atitude de um infantilismo
absurdo: “A Amazônia é nossa, e eu faço dela o que quiser. Então vou tocar fogo
nela porque ela é minha”. Eu posso fazer que nem a criança que vai quebrar o
brinquedo porque o brinquedo é dela, entendeu?
É um pouco isso que os militares falam, que não tem
que se meter com a Amazônia, a Amazônia é nossa. Nossa pra fazer o quê?
Por que as Forças Armadas não quiseram intervir em
três denúncias recentes de ataque de garimpeiros ao Ibama? Porque eles estão do
lado dos garimpeiros.
Não é só essa admiração ridícula do Bolsonaro pelo
garimpo, que vem desde a amizade dele, em Serra Pelada, com o Curió, não. Isso
é só a parte mais, digamos assim, grotesca. Mas a ideia de utilizar a população
pobre, miserável, desesperada, como carne de canhão, pra entrar lá, pegar
malária, matar índio, ser morto, destruir, ferrar e tudo, é uma ideia que na
verdade está na cabeça dos militares.
Na verdade, isso faz parte da ideologia nacional. O
garimpeiro é mais brasileiro do que o índio para o militar. Agora, quando você
chega nesse pessoal que está fora, tipo os índios, a população tradicional, os
ribeirinhos, os caboclos, os sertanejos, o pessoal cujo modo de vida é contraditório,
no sentido forte da palavra, a esse projeto de país, aí a coisa pega.
O que está acontecendo, também, é que em parte esse
genocídio que está sendo praticado no Rio de Janeiro em cima das favelas, com a
polícia atirando de helicóptero, é porque, em larga medida, o chamado
“proletariado” se tornou meio dispensável. Não é preciso tanto trabalhador
assim, e você tem uma quantidade de pessoas, hoje, que são consideradas
supérfluas dentro do sistema econômico. E essas pessoas estão sendo
massacradas.
P. Um grande traço desse governo que
me parece diferente dos anteriores é essa coisa de apresentar lideranças e
populações como “ah, olha aqui, os Paresi [etnia do
Mato Grosso] querem plantar soja”. Essa narrativa do índio do século 21.
R. De um lado, acho que nós estamos
assistindo a uma espécie de ofensiva final contra os povos indígenas.
É a grande onda agora, e vai por todos os lados. Se
não for comprando eles com dinheiro, vai ser metendo os evangélicos malucos lá pra quebrar, pra
proibir pajelança, fazer o diabo, acusar os índios das coisas mais loucas.
Porque é o seguinte: índio não é santo. Ninguém é.
Tem filho da puta entre os índios, não sei se tanto quanto, mas eles não estão
excluídos, digamos, do hall da filhadaputice humana.
Então sempre vai ter algum índio, alguma pessoa indígena, que vai servir de
traidor, como é o caso dessa moça, essa mulher Kalapalo que o
Bolsonaro arrastou pra lá e pra cá e que foi, inclusive,
renegada pela sua aldeia, pelo seu povo.
Sem contar outra coisa: os povos indígenas
raramente possuem uma estrutura política que tem um porta-voz, uma pessoa que
fala em nome da população. Então, o que acontece é que se tem um cara que fala alguma
coisa, vai chegar outro que vai dizer o contrário, porque tem as lutas
políticas internas. Se não é luta política interna, o fulano de tal se alia com
o agronegociante pra ferrar o outro. Ele vai fazer isso.
Pra começar, os povos indígenas são trezentos e
poucos no Brasil. Chamar todos eles de indígenas não diz muita coisa sobre
eles, diz muito mais sobre a Constituição brasileira, sobre legislação, que
chama de indígena uma coisa. A noção de indígena, na verdade, é uma palavra,
principalmente, de significado jurídico.
Daí a confusão: isso é índio, isso não é índio, não
sei o quê. Quando, na verdade, índio é uma forma de relação com o Estado. É
claro, tem uma dimensão histórica, são populações descendentes, remanescentes,
e que se pensam como ligadas às comunidades pré-colombianas. Mas são também
comunidades que têm uma certa relação de exterioridade em relação ao Estado
nacional e à etnia dominante, que é uma relação muito particular. E essa
relação passa, principalmente, por uma certa relação com a terra.
E que, na verdade, é o nó do problema, porque o que
acontece é o seguinte: a Amazônia é a parte do Brasil que representa o que era
todo o Brasil em 1500. Não que ela seja exatamente igual, longe disso. Mas essa
é a parte que ainda não foi destruída, que ainda não foi civilizada, que ainda
não foi “conquistada”. E agora é: “Temos que acabar os serviços começados em
1500”.
E como a Amazônia virou um foco de atenção internacional
por conta do fato de que é a maior floresta tropical do mundo, porque tem uma
importância grande no equilíbrio geoquímico e termodinâmico do planeta,
evidentemente está todo mundo olhando pra ela.
Esse seria o momento em que o Brasil poderia, se
tivesse uma diplomacia menos alucinada do que a desses malucos que estão no
ministério… Ela estaria naturalmente faturando, no sentido positivo da palavra,
utilizando isso como um trunfo importante na sua posição no cenário
internacional. Mas, ao contrário, eles estão batendo o pé, fazendo uma birra
absolutamente ridícula. E vão sofrer as consequências. Agora eles têm um
inimigo importante, que é o papa, que, evidentemente, não tem tantas legiões,
como dizia o Stálin, não tem um exército, mas exerce um poder grande sobre a
opinião pública.
P. O senhor falou da questão da
liderança indígena, que não tem uma voz que fale por todos, mas a gente tem a
figura do Raoni, por exemplo. Eu
queria que o senhor comentasse o papel dele nesse processo da resistência indígena atualmente. E, sobre
a questão da terra, queria que o senhor falasse do papel que tem a reforma
agrária.
R. A reforma agrária é um caso
especialmente importante. O Brasil não fez reforma agrária, e tudo o que
acontece no Brasil, em parte, se explica por isso. Se optou por jogar a
população rural nas cidades e entregar o campo à agricultura mecanizada e
concentrada. O que acontece na Amazônia é que você ainda tem uma porção grande
de população tradicional, ribeirinhos, que não sei o que vai ser dela, porque a
soja já chegou na Amazônia faz tempo. A fronteira econômica está subindo e, à
medida que ela sobe, vai expulsando gente, jogando fora árvore, colocando boi —
o Brasil tem mais boi do que gente. E esse boi, evidentemente, não vai todo
para a barriga da população brasileira. Então nós estamos, na verdade,
alimentando o mundo. E o engraçado é que vejo, frequentemente, o governo se
orgulhar de que o Brasil está alimentando o mundo. Devia estar alimentando os
brasileiros, né? Pra começar.
P. A fome voltou…
R. É, a fome voltou, e nós nos
orgulhamos de que estamos alimentando a China. Que orgulho é esse? Se a população
brasileira inteira estivesse, de fato, em saúde nutricional espetacular, você
poderia se dar ao luxo de se orgulhar de também estar alimentando outros
países, né?
Na verdade, nós estamos queimando os móveis da casa
para nos aquecermos, digamos assim. A gente está destruindo o Brasil,
exportando água, exportando solo para fora do Brasil, e estamos mais ricos por
causa disso? A desigualdade diminuiu depois de anos de destruição do Cerrado, da Amazônia? O
ciclo do ouro, o ciclo do café, o ciclo da borracha, o ciclo da soja, todos
esses ciclos com a mesma estrutura, a saber: o Brasil como exportador de
produtos primários para as metrópoles capitalistas. Estamos na mesma posição em
que estávamos em 1500. É uma colônia de exportação de commodities.
Agora é commodities high-tech, né? Não
é mais o braço escravo, não é mais o índio amarrado, agora é a colheitadeira, é
o grande trator, é a feira de Barretos.
O Brasil continua sendo uma colônia que consegue o
prodígio de ser uma autocolônia, colônia dos outros e a colônia de si mesmo.
Enfim, e a reforma agrária, o que aconteceu com
o MST? Acho que o MST se
deu mal no Governo Dilma. Ele perdeu o fôlego, perdeu o pique, perdeu a
capacidade política, em parte porque ficou nas mãos da sua relação com o
governo do PT.
Eu sou otimista numa coisa: acho que o Trump não vai ser reeleito. Mas eu falei
que o Bolsonaro não ia ser eleito, e ele foi, né? Eu falei que, se ele fosse
eleito, eu saía do país. Eu não saí, né?
Mas, se o Trump não for reeleito, a situação do
Brasil vai mudar muito, porque não tem mais um outro maluco. Essa aposta total
da Presidência numa relação carnal com os EUA do Trump é bem arriscada.
P. Essa extrema-direita mundial aflorando assim
parece que é algo cíclico, né?
R. O fato é que isso está ligado,
evidentemente, a uma crise econômica mundial, a crise do capitalismo. Não por
acaso teve a crise de 1929, em seguida tem o fascismo. E hoje você tem a crise
que começou em 2008 e que, na verdade, não acabou. Esse é um ponto de mudança:
estamos numa crise econômica mundial, que está se manifestando no Brasil de uma
maneira particularmente dramática — não se sabe o que vem depois dela. Essas
reações de extrema-direita são claramente reações, parece que são movimentos
reativos diante de uma crise, de uma precarização, em relação às condições de
vida, e também uma reação à crise ambiental.
Boa parte dos refugiados que estão saindo dos seus
países de origem estão saindo por causa de questões de destruição das condições
materiais: secas brutais, enchentes. Então, são refugiados do clima, em larga
medida. Esse pessoal que está indo para os Estados Unidos, tentando pular o
muro de qualquer jeito, em grande medida, é refugiado do clima.
O que me preocupa mais de tudo é a crise ecológica.
O problema é que ela atinge o que a gente pode chamar de condições realmente
materiais de existência. Não é o salário; é o ar. Não é o emprego; é a água.
Então, são coisas que atingem um nível de
fundamentalidade para animais reais, pessoas reais, como nós somos, que
precisam de ar, de água, de uma porção de coisas materiais. É nesse nível que a
crise se manifesta. No esgotamento dos recursos pesqueiros, na acidificação
dos oceanos, na subida no nível do mar, no
aquecimento da temperatura, que provoca secas, que provoca enchentes, que
provoca furacão, que provoca refugiados.
Esse tipo de crise é uma crise que, para que se
possa sobreviver a ela, você precisa de uma radicalidade nas mudanças da forma
que se tornou hegemônica no mundo.
Mudanças muito radicais, que não vão ser três
torres eólicas que vão resolver. Vai precisar de muito mais que isso, vai
precisar de uma mudança radical nos padrões de consumo, das sociedades
desenvolvidas, de uma redistribuição radical dos recursos pela população do
planeta.
Mas é mais fácil, em vez de acontecer isso, que
aconteça outra coisa, guerras genocidas, extermínios maciços de população,
destruições gigantescas de meio ambientes inteiros… É por isso que eu não sou
muito otimista, né?
P. No seu livro Há mundo por
vir?, que você escreveu com a Débora [Danowski, filósofa e companheira de
Viveiros de Castro] se fala que essa catástrofe climática impõe ao ser humano
uma mudança metafísica de não pensar o mundo inteiro a partir de si mesmo, com
uma centralidade no homem.
R. Não basta ficar dizendo: “Ah, a
culpa é do cristianismo, a culpa é
de quem botou o homem acima de outras criaturas”. Isso tudo não deixa de ser
verdade, mas acho que o fundamental não é isso.
Acho que o que marca a modernidade ocidental é uma
certa confiança de que o homem, através da tecnologia, é capaz de resolver
qualquer problema que surja, de que sempre haverá uma solução. O pessoal está
cada vez mais aceitando que há uma crise ecológica, mas [pensa que] alguém vai
dar um jeito nisso. E se não der? Por que tem que dar? Nem tudo tem solução.
Acho que a crise ecológica não tem solução no
sentido de manter o status quo atual. Isso é fora de questão. E todo mundo
sabe: se o mundo inteiro consumisse a quantidade de energia per capita que
consome um cidadão americano, você precisava de cinco planetas Terra para
sustentar a humanidade inteira. Qual é a alternativa?
P. Você falou que a gente deveria
perguntar aos índios a respeito do fim do mundo porque o mundo deles está
acabando desde 1500. Que lições concretas os povos indígenas podem nos dar a
respeito dessa convivência com esse fim do mundo, que é gradual, não acontece de
uma vez?
R. É evidente que os 7 bilhões de
pessoas humanas que vivem no planeta Terra não podem viver como vivem, hoje,
uma população de 500 pessoas na Amazônia. Mas os povos indígenas, em geral no
mundo inteiro, e não só os povos indígenas brasileiros, têm uma relação com o
resto da realidade, particularmente com a realidade biológica, viva, outros
seres vivos, que é muito diferente daquela que está implícita no nosso modo de
vida e explícita em várias doutrinas religiosas, filosóficas etc.
Qual é essa relação? Essas populações se veem como
parte de um universo no qual elas estão no mesmo nível que os demais seres. Não
quer dizer que eles preferem ser outros seres. Eles só se percebem como no
mesmo nível, como sujeitos às mesmas condições metafísicas de existência,
digamos assim.
O que acontece na modernidade ocidental é que o
homem se considera como um ser de exceção. Ele é um animal, mas ele tem alguma
coisa que os animais não têm. Antigamente chamava de alma, agora é cultura,
ciência, tecnologia… Mas é alguma coisa que torna o homem metade animal, metade
anjo, alguma coisa assim. E o lado extra-animal, superanimal do homem,
compensa, cancela, libera a espécie dessa imanência terrestre — transcende a
realidade material.
Já os povos tradicionais, porque a história os
conduziu a outra direção, não se veem acima das demais criaturas. Eles podem
achar que os homens são mais inteligentes do que os jacarés, mas eles não acham
que essa diferença é uma diferença de grau, não é uma diferença de natureza.
Para nós, é uma diferença de natureza. É uma
espécie de hipocrisia. Porque a gente tem essa sensação de que a gente é dotado
de alguma coisa que nos tira de qualquer problema, que as outras espécies vão
se extinguir, mas a nossa não — quando a gente sabe que vai se extinguir
também.
É como se a espécie humana fosse o único animal
que, porque ela sabe que é um animal, ela não é um animal. Porque, como ela
sabe que é um animal, isso a torna diferente de todos os outros animais e,
portanto, não é animal.
O que é uma contradição em termos. Ao saber que é
um animal, devia torná-la mais atenta às condições que a aproximam dos outros
animais: da necessidade de um ambiente tolerável pela espécie.
P. O senhor até usou a expressão de
que a espécie humana está se suicidando.
R. Num certo sentido. Talvez toda
espécie se extinga porque se suicide, a menos que caia um meteoro na
cabeça dela, é claro. Quando a gente fala “espécie”, também precisa
ter cuidado, porque, quando a gente fala “espécie”, nove vezes em dez está
falando é dos países superdesenvolvidos, seu modo de vida superdesenvolvido.
Essa é outra palavra que eu gosto de usar, que é
superdesenvolvimento. O que a gente chama de [país] desenvolvido, na verdade, é
superdesenvolvido, no sentido de excessivamente desenvolvido. No sentido de que
consome muito mais do que é necessário, muito mais do que é razoável e muito
mais do que é possível, dadas as condições materiais deste planeta. Então,
esses países são países superdesenvolvidos.
Eles têm que se “desdesenvolver” para que outros
países, outros povos, possam se desenvolver um pouco mais, de modo a equalizar
um pouco as condições de existência de Bangladesh com a Califórnia.
Quer dizer que Bangladesh tem que virar a
Califórnia? Não. Quer dizer que a Califórnia tem que virar Bangladesh? Também
não. Mas tem que haver um meio-termo aí, tem que haver uma certa aproximação
entre esses dois povos, entre o camponês de Bangladesh, a favela carioca e os
condomínios de luxo de Miami e de Los
Angeles. Porque, se não aproximar, o planeta vai explodir.
O Brasil é um país que está sendo usado pelo
sistema econômico mundial para fazer um experimento científico, que é: o quanto
você pode ferrar uma população sem produzir uma insurreição sangrenta? Até
quando você pode ir tirando direitos, ferrando, explorando, expropriando,
matando, jogando na informalidade, sem que isso produza um motim, uma
revolução, uma explosão de violência popular? É quase como se fosse um
experimento científico: o quanto eu posso torturar esse bicho antes dele
morrer, sem que ele morra?
E a gente sabe que a humanidade aguenta muita
coisa, então é difícil imaginar… Tem a famosa ideia de que um dia o morro vai
descer… Mas e se não descer?
P. E tem a resistência indígena…
R. Você me perguntou do Raoni,
esqueci de responder a isso. O que acontece é o seguinte: sim, o Raoni se
tornou um símbolo, esse símbolo é capaz de catalisar a luta indígena, ele é um
símbolo essencialmente para fora, um símbolo para os não índios, sobretudo. Em
parte, por causa do visual que é muito marcado, em parte porque ele é um
senhor, já está há muito tempo na luta, literalmente. E os índios estão se
vendo obrigados a construir alianças, causas comuns. Eu me lembro de uma frase
do Daniel Munduruku, que é um escritor: “Eu não sou índio, eu sou Munduruku.
Índio é uma coisa de vocês, eu sou Munduruku”. Tem toda a razão.
Mas os Munduruku agora estão se juntando com, sei
lá, Kayapó, com os Araweté, com os Parakanã… Para que todos esses povos, que
não são uma coisa só, possam apresentar uma frente só diante de um outro lado,
que, esse sim, é uma coisa só, nós, o Estado brasileiro, a etnia dominante, que
é branca.
Por que eles nos chamam de brancos? Inclusive,
palavra que, muitas vezes, pode ser aplicada a um negro? Porque o problema não
é de cor. Uma metonímia, branco pra falar de brancos, negros, amarelos e azuis,
mas ao mesmo tempo é porque o branco é de fato a figura central. O branco é uma
coisa só pra eles: é o Estado.
As sociedades indígenas situadas no Brasil sempre
foram sociedades com grande potencial anárquico. No sentido de que, dadas as
condições demográficas e ecológicas do Brasil pré-colombiano, numa sociedade
indígena, se você não está satisfeito com a aldeia, com o teu pessoal, você
pega as tuas coisas, pega a rede e vai embora, faz a aldeia do outro lado. Ou
seja, eram sociedades que não tinham necessidade de produzir sistemas políticos
piramidais com um líder fundamental. Porque, se não está contente com o líder,
vai embora e faz outra aldeia. Isso permanece nas sociedades indígenas como um
impulso refratário a qualquer pessoa que fale em nome do todo, que, ao mesmo
tempo, é contraditório com o que eles precisam agora, que são nomes que possam
falar em nome deles todos contra esse Estado etnocida.
Os índios estão, de fato, numa situação complicada.
Eles têm ao mesmo tempo que produzir lideranças, às vezes até supraétnicas. O
Raoni, por exemplo, que é um Kayapó, mas não está falando ali em nome dos
Kayapó. Ele está falando em nome dos índios, de todos os povos indígenas, e, ao
mesmo tempo, isso é uma coisa que vai um pouco na contramão da própria
sensibilidade política indígena. E eles têm que negociar isso, não vai ter
outro jeito, porque eles estão enfrentando um inimigo que os obriga a se unir. Eles
só estão unidos por causa dos brancos. São os índios que estão segurando a
Amazônia da força destrutiva do agronegócio, do grande capital e desses
malucos militares que acham que Brasil bom é criar um deserto, que governar é
criar um deserto.
P. Hoje a gente vê um obscurantismo
que chegou ao ponto de se questionar o formato da Terra.
R. Acho que tudo está naquela frase
do Darcy Ribeiro, que todo mundo cita com razão,
que é: a má educação no Brasil, a destruição, o péssimo sistema educacional no
Brasil, não é um defeito, é um projeto. Acho que existe, sim, um projeto de
deseducar a população brasileira, exceto quando se trata de formar mão de obra
qualificada para certas funções específicas do mercado de trabalho capitalista.
Mas, do ponto de vista do que a gente chama de cultura em geral, acho que
existe um projeto de impedir o povo de aprender.
Por que esse ataque às universidades está se dando
agora que a política de cotas entrou para valer? Tem cursinho de pré-vestibular
na Maré, aprovando todo mundo no vestibular das universidades públicas. “Não
pode isso. Se esse povo começar a pensar, vai dar um problema.” Tem que manter
a população sob controle.
E agora você tem essas coisas loucas, tipo
terraplanismo, revisionismo histórico,
negacionismo climático. De onde é que vem isso? Principalmente dos Estados
Unidos, vem do [Steve] Bannon, vem do alt-right, vem da nova direita. E vem
junto com o quê? Com uma certa fantasia da Idade Média, cruzados e Deus-vult e não sei
o quê. Então acho que existe uma espécie de projeto de regressão histórica
alucinada, mítica.
Acho que não é por acaso que chamam o Bolsonaro de
“mito”, porque existe aí uma mobilização de certas estruturas míticas que são
politicamente reacionárias e que estão sendo difundidas, no meu entender,
deliberadamente, por uma elite que, evidentemente, não acredita nisso. Você
acha que o Olavo de Carvalho acha
que a Terra é plana? Claro que não.
Acho que em parte tem um projeto deliberado de
introduzir a confusão, o terraplanismo,
negacionismo e tal, e que passa por um projeto político mais amplo, de
regressão cultural antiliberal, antidemocrático.
créditos: Márcia Zaros
créditos: Márcia Zaros
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