artigo “Na
pandemia, exército volta a matar brasileiros”, de Luiz Fernando Viana, (Época.
17.1.2021)
Por: Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
As
democracias não falecem por doença congênita. Jovens ou maduras elas são
assassinadas, e só há uma arma capaz de atingi-las mortalmente: a espada, seja
empunhada por uma sedição, seja por um
golpe de Estado. No Brasil e no mundo o golpe de Estado é a forma que as forças
dominantes dispõem para chegar ao poder evitando os percalços de eleições. Ele
ou é dado diretamente pelas forças armadas, ou é levado a cabo com seu
assentimento cúmplice. Mas em qualquer hipótese nenhum golpe de Estado se
sustenta sem o poder militar. No Brasil ele foi agente de todos os golpes de
Estado levados a cabo com sucesso. E foi ele que abriu caminho para a aventura
do capitão insidioso, e hoje lhe dá
proteção. Os militares, portanto, na medida em que sustentam e participam do
comando do governo, até mesmo (e com escandalosa inépcia) na administração da
saúde (onde pontifica a estultice de um general da ativa), estão solidários com
todos os seus erros e crimes, inclusive os de lesa-pátria, como a política
externa que nos transforma em aliados subalternos do império do Norte e seus
interesses.
Dessa
obviedade histórica não podem fugir. Resta-nos supor que as forças armadas
ainda conservem – porque nem todos os generais estão ocupando sinecuras no
governo – capacidade de reflexão e,
antes que seja irremediavelmente tarde, revejam o papel que estão cumprindo,
contra a história que pretendem representar, contra os interesses do país e de
seu povo, contra a vida e a esperança.
Não é
certo, por exemplo, que devemos nossa unidade territorial aos militares. A
expansão é obra de mamelucos, negros escravizados, índios, e da ação genocida
de bandeirantes saídos de São Paulo, mas saídos também da Bahia, de Pernambuco,
do Maranhão, do Pará e do Amazonas. Segue-se o povoamento do sertão, obra do
povo, a que se reporta Capistrano de Abreu.
A integridade territorial, por outro lado, foi obra de nordestinos, na
colônia, e de gaúchos na colônia e no império em guerras que consumiram
milhares de vidas. No Império foi obra
da Regência, confirmada e consolidada na república pela diplomacia do Barão do
Rio Branco. O Brasil foi à guerra contra a insistente resistência dos generais
Eurico Gaspar Dutra, Ministro do Exército, e do todo poderoso general Góes
Monteiro, chefe do estado maior da força, como está fartamente documentado.
Aliás, na reunião do ministério (27 de janeiro de 1942) que decidiu pela
beligerância, a proposta foi apresentada pelo civil Getúlio Vargas, contra o
parecer do ministro da Guerra.
Os
militares sustentaram, até a exaustão, em nome dos grandes proprietários, dois
impérios, cujas bases radicavam no escravismo e na estagnação, uma das raízes
do atraso de hoje. Preferiram, sempre, um país tacanho, de analfabetos e mal
alimentados, de deserdados da terra, a tocar nos privilégios da classe dominante,
sejam os velhos latifundiários do Império, sejam os grandes fazendeiros da
primeira república, seja o empresariado rentista, improdutivo, de nossos dias. O
progresso do Brasil, dos brasileiros, é visto como ameaça, pois pode
desestabilizar o statu quo do mando secular.
E os militares
brasileiros, a quem a nação deve outros serviços, jamais se notabilizaram na
defesa da democracia. Na República a golpearam insistentemente desde as
ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto
(1891-1894) até hoje. Vide o golpe de 1937, arquitetado por Góes Monteiro e
operado por Eurico Dutra; o golpe de 1954 operado pelas três forças e que teve
no general Juarez Távora um de seus comandantes, a tentativa de golpe contra as
eleições de 1955 (que teve entre seus líderes o general Canrobert Pereira da
Costa e o brigadeiro Eduardo Gomes); a intentona de 1961, encabeçada pelos três
ministros militares e o chefe do estado maior do exército, general Cordeiro de
Farias; o golpe de 1964, que nos legou 20 anos de ditadura, com seu rol de
cassações de direitos políticos, prisões, torturas e assassinatos, muitos
levados a cabo em dependências militares, como o assassinato de Mário Alves
Alves de Souza Vieira, no quartel da polícia do exército no Rio de Janeiro, e
de Stuart Angel, na base aérea do Galeão. Sempre na defesa da ordem (pleiteada
por todos os privilegiados), dos interesses da grande propriedade da terra, da
burguesia e do capital internacional, contra a emergência dos interesses
populares, travando o processo histórico.
Até hoje não se fizeram as reformas necessárias
para transformar a nação em país soberano, como a reforma agrária. Aliás, por
defender “reformas de base” um presidente da República foi deposto e
implantada, pelos militares, uma ditadura, pesadelo que ainda nos assombra.
De
outra parte, há certas e incômodas verdades que os generais não comentam, como
a “guerra do Desterro”(1894) [2] e o
“ajuste de contas” do sanguinário coronel Moreira César, como não têm uma
só palavra sobre o covarde massacre dos
beatos de Antônio Conselheiro, em Canudos para proteger os interesses dos
latifundiários da Bahia. Ainda na República, em 1937, lembro o bombardeio do
Caldeirão, no Ceará, contra os camponeses do beato Lourenço, para proteger os
interesses dos coronéis do Ceará, evento esquecido à direta e à esquerda. Não
sei se a marinha registra com orgulho a Revolta da Chibata, de 1916, o uso de chibatadas por
oficiais navais brancos ao punir marinheiros afro-brasileiros e mulatos. .
O general comandante do exército Edson Leal Pujol não gostou do artigo “Na pandemia, exército volta a matar brasileiros”, de Luiz Fernando Viana, (Época. 17.1.2021) e mandou o general chefe do centro de comunicação social do exército responder à revista. O subordinado cumpre à risca o mandato do chefe, e, no melhor (embora canhestro) estilo do velho e expurgado florianismo, ou lembrando os tempos do grotesco marechal Hermes da Fonseca, mais que defender a corporação, supostamente injuriada, desanca o jornalista acusado de blasfêmia e tenta intimidar a revista, ou seja, investe contra a liberdade de imprensa: “(...) o Exército Brasileiro exige imediata e explícita retratação dessa publicação, de modo a que a Revista Época afaste qualquer desconfiança de cumplicidade com a conduta repugnante do autor e de haver-se transformado em mero panfleto tendencioso e inconsequente”. Se tal é a pena que pesa como espada de Dâmocles sobre o periódico, que estará reservado ao articulista? Fosse nos idos do Estado Novo, ditadura imposta ao país pelas tropas do ministro da guerra, general Eurico Gaspar Dutra, os militares fechariam a revista e o coronel Filinto Muller prenderia o jornalista nas enxovias do DOPS no Rio de Janeiro. Nos idos da ditadura de 1964, os fardados cassariam os direitos políticos do articulista e o confinariam em Fernando de Noronha, como fizeram com Hélio Fernandes. [4]
NOTAS:
1.ARTIGO:
NA PANDEMIA, EXÉRCITO VOLTA A MATAR BRASILEIROS
https://epoca.globo.com/artigo-na-pandemia-exercito-volta-matar-brasileiros-24842973
2. A
tragédia de Desterro:
os
acontecimentos ocorridos em Santa Catarina, entre 1893 e 1894. Os episódios da
Revolução Federalista e da Revolta da Armada, a violenta represália imposta aos
revoltosos, culminando com as execuções ocorridas na Fortaleza de Anhatomirim e
a controversa mudança do nome da cidade de Desterro para Florianópolis. - Em 16
de abril de 1894 chegava ao fim o revolucionário Governo Provisório da
República dos Estados Unidos do Brasil, que havia se insurgido numa guerra
civil contra o governo central do marechal Floriano Peixoto. - Por seis meses, a cidade de Desterro, capital
de Santa Catarina, foi sede dessa república independente, formada pela união
dos revolucionários federalistas dos três estados do Sul do país aliados aos
também rebelados militares da Marinha Brasileira (a Armada). - Após a derrota,
Desterro seria rebatizada como Florianópolis - em homenagem a Floriano - e
dezenas de revoltosos seriam perseguidos, presos e sumariamente executados na
Fortaleza de Anhatomirim, em um dos capítulos mais sangrentos da história
brasileira. - O episódio decisivo para o
fim da revolta foi o combate naval travado na madrugada daquele 16 de abril,
travado entre uma frota de 11 embarcações legalistas e o temido encouraçado
Aquidaban. Líder da Revolta da Armada, como era então denominada a Marinha do
Brasil, aquela embarcação representava o último elo de resistência contra o
governo de Floriano.
3. Na época, a Ilha tinha 6,5 mil moradores e a província de Santa Catarina somava 35 mil habitantes. https://floripacentro.com.br/resgate-historico-o-dia-em-que-o-imperador-dom-pedro-i-visitou-desterro-assistiu-a-missa-passeou-e-foi-embora/
4. Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
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