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quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Guerra espiritual e teoria da prosperidade e para exorcizar os demônios da América Latina milagres partilhados com espetacularização.

(* por Sandra Bitencourt)

Jair Bolsonaro durante a 27ª edição da Marcha para Jesus, em São Paulo.| Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Com números substantivos, uma inédita capacidade de globalização, poder midiático, conversões em massa e influência política pelo discurso conservador, o pentecostalismo mostra poder no continente

Os pentecostais ou neopentecostais são um movimento social que representa um dos maiores fenômenos políticos e sociais na América Latina neste século. Emergentes de diferentes origens missionárias, uma característica comum é o reavivamento espiritual, ou seja, o Espírito Santo deixa de ser uma metáfora. O que isso significa? Trata-se da reivindicação desde o surgimento dessas correntes na Igreja Episcopal Metodista Africana da Califórnia, em 1906, do renascimento espiritual com eventos semelhantes aos de Pentecostes narrados no Novo Testamento. Nessas circunstâncias, os cristãos evangélicos tinham sinais e manifestações vivas do Espírito Santo, manifestado no corpo, com aquisição de dons como falar idiomas desconhecidos, formular profecias, curar doenças, melhorar as relações intrafamiliares e ter sucesso pessoal na vida cotidiana. Enfim, milagres partilhados com espetacularização. Essas características serão a base da teologia do pentecostalismo, da sua autonomia e influência como ramo evangélico.
Daí deriva a relevância dos rituais de exorcismo e da explicação das mazelas, doenças, problemas econômicos ou impasses morais pela possessão do demônio. Ter um inimigo claro para justificar os problemas e uma estratégia de intolerância para combatê-lo, traz um conforto diante da incerteza e da crise. Daí compreendemos a junção com discursos radicais reacionários. Por algum tempo essas correntes se mantiveram isoladas da esfera pública, mas na segunda metade do século passado, passam a interagir na política institucional, a conformar redes midiáticas para garantir o investimento em televangelização e a fortalecer bases doutrinárias e representações políticas para globalizar sua ação.
Os números e os últimos eventos eleitorais mostram que a estratégia foi bem sucedida: são de religião evangélica cerca de 20% da população do continente, em comparação com 69% dos católicos. Em 1900, os protestantes eram cerca de 50.000: apenas 1% da América Latina, enquanto 94% eram católicos. Em 1930, eles tinham se tornado um milhão, 50 milhões nos anos 1980. E, no ano 2000, subiram para cerca de 100 milhões. A projeção é que em 2030 os evangélicos dividam de igual para igual com os católicos o número de fiéis. No Brasil, em apenas 40 anos, o percentual passou de 5% para 22% dos fiéis. Na Venezuela, passaram de 7% a 17% da população na última década.
Esses contingentes disputam a consolidação de seu poder de influência construindo uma rede diversa e potente: administram rádios e canais e TV, atuam nas periferias com inúmeros programas sociais e respostas de pertencimento, ou seja, influenciando comportamento e provendo identidade para o modo de vida que defendem, e, claro, se envolvem na disputa política de vários modos. Vigiam e monitoram campanhas eleitorais e escolhas políticas dos candidatos, unificando as diferentes filiações em torno a temas morais e seus cavalos de batalha como casamento igualitário e proibição do aborto. Se constituem assim em uma poderosa força sociopolítica, capaz de prover resposta às diferentes agonias da pós-modernidade. Mesmo no campo econômico, conseguem indicar um caminho pelo empreendedorismo vinculado à teoria da prosperidade. Tal ação coordenada somada a um sistema político fragmentado e a um sistema financeiro que acentua a exclusão, permite que essas igrejas cresçam e se associem a uma sensibilidade mobilizadora que alimenta formações políticas de direita.
É importante, no entanto, compreender que o que habitualmente se chama de evangélico é um rótulo genérico que não dá conta das complexidades e das distinções nesse movimento em que atuam distintos grupos religiosos: luteranos, metodistas, calvinistas, batistas, presbiterianos e pentecostais, entre as denominações mais conhecidas. Conforme Paul Freston, para além do agravamento da miséria, o que pode explicar o sucesso empresarial dos pentecostais e neopentecostais é um conjunto de aspectos culturais, sociais e religiosos. Diz esse autor que a religião é ambivalente e oferece diferentes coisas a diferentes indivíduos. “O pentecostalismo é flexível e é improvável haver uma única razão para o seu crescimento (…) é necessário levar-se em conta não apenas os fatores econômicos e políticos, mas sociais, culturais, étnicos e religiosos; não apenas o nível macro (quais são as configurações favoráveis à conversão) mas também o nível micro (porque as pessoas com estas características se convertem)”, destaca. Uma das explicações é a possibilidade de vivenciar a experiência com o Espírito Santo, por todos os membros, mesmo os iletrados.
Outro aspecto é a flexibilidade, a possibilidade de adaptação a diferentes organizações, localidades e realidades, já que não depende de um clero formal e permite a ascensão de quaisquer lideranças, uma vez que não depende de formação teológica, mas emerge da própria comunidade, o que viabiliza alto nível de adaptação às culturas locais, “diferentemente do protestantismo histórico, que manteve, em maior ou menor grau, fidelidade às suas tradições europeias. Um dos exemplos mais ilustrativos desta tendência é o da Igreja Luterana, tanto no Chile, como na Argentina, Uruguai e Brasil, onde a cultura germânica foi reforçada pela confissão religiosa, dificultando ou mesmo impedindo a filiação de outros grupos sociais, bem como a integração daqueles imigrantes” .
A conexão bem definida entre superação da carência econômica e religião mostra que na fé está a resposta. A prosperidade econômica pode ser alcançada por uma ética do trabalho, mas principalmente pelo empreendedorismo. É comum nas práticas dessas igrejas o auxílio para que desempregados montem o próprio negócio, mesmo na economia informal, e a dinâmica da ajuda mútua (irmão ajuda irmão) criando redes de proteção e pertencimento. Dentre as estratégias de sobrevivência e controle estão a sublimação sexual, o interdito ao fumo, às drogas e ao alcoolismo) e a adoção das noções puritanas de prosperidade, mas não subordinadas, como há dois séculos, à salvação, como regra de conduta e identidade coletiva.
Esses discursos simples, eficazes vão arrebatar frações significativas e estabelecer posições muito claras em face da política.
A Teologia da Prosperidade é um desdobramento da crise de 29 nos Estados Unidos, cujo fundamentalismo reorienta sua ética em favor de uma maior participação na esfera pública a recristianização da América, empreendida através da evangelização em massa, com uso intenso dos meios de comunicação.
Na América Latina isso será um investimento crescente e incremental. Jornais, rádios, TVs e mais recentemente Portais Gospel na internet farão as vezes de instâncias centralizadoras, alinhadoras dos discursos. Os porta vozes serão lideranças que se sobressaem nesses meios e cumprem também uma função corporativa e representativa das distintas variedades dos grupos evangélicos. Não raro, essas lideranças disputam notoriedade entre si.
Pelo menos três grandes tendências evangélicas podem ser reconhecidas na América Latina. Primeiro, os protestantismos históricos, que chegaram à região no século 19 e incluem principalmente luteranos, metodistas e calvinistas. Apesar de sua fraca expansão demográfica, eles tinham privilégios culturais e contribuíram para o liberalismo político. Segundo, há as tendências evangélicas originadas nos Estados Unidos, que chegaram à América Latina desde o início do século XX, com um forte senso missionário e proselitista sustentado no literalismo bíblico.
Eles eram, portanto, profundamente conservadores em sua rejeição à ciência e em qualquer reivindicação ao pluralismo religioso. Uma parte das igrejas Batista e Presbiteriana fazem parte dessa segunda onda de evangélicos. E terceiro, os Pentecostalismos, variante específica de um movimento que mostrou nos últimos 100 anos uma capacidade sem precedentes de globalização. O pentecostalismo produz conversões em massa de fiéis na China, Coréia do Sul, Cingapura, Filipinas e vários países do continente africano. Em todos esses casos, como na América Latina, verifica-se uma constante: o movimento tem uma grande capacidade de vincular sua mensagem às espiritualidades locais, além de incentivar formas flexíveis, variadas e facilmente apropriadas de organização, teologia e liturgia, disseminadas entre os mais diversos segmentos populacionais de diferentes contextos nacionais.
A teologia da prosperidade, que argumentou e antagonizou a teologia da libertação em um nível prático, sustentou que, se Deus pode curar o corpo e a alma, não há razão para pensar que ele não pode conceder prosperidade. A bênção se fez completa por meio da contrapartida do fiel, o dízimo. Assim podemos observar um poder econômico cada vez maior e livre de impostos, convertido em poder político. Na Colômbia, por exemplo, segundo dados de 2017, são 750 colégios públicos contra 3.500 igrejas neopentecostais. Além da capacidade de adaptação, do discurso forte , da presença viva e miraculosa do Espírito Santo e das mensagens persuasivas, joga a favor dos neopentecostais o declínio da Igreja Católica. No Chile, um dos países tradicionalmente católicos, a confiança na Igreja Católica, segundo o instituto de pesquisas Latinobarómetro, caiu de 80% em 1996 para 37% no ano passado.
O número dos que se declaravam católicos era de 74% e caiu para 45%, no mesmo período. É a queda mais brusca entre países da América do Sul. A tendência declinante já se verificava desde os anos 90, mas se acentuou depois de escândalos de pedofilia.
Os evangélicos permanecem com uma certa autoridade moral para o discurso conservador e a prerrogativa de guerra espiritual. A doutrina da guerra espiritual sustenta que o divino está no mundo, mas também está a presença do mal. Dessa maneira, o diabo deixa de ser uma metáfora para se tornar uma força espiritual encarnada que ameaça a saúde, a prosperidade e o bem-estar, e isso resulta em uma concepção de experiência religiosa e liturgia na qual a expulsão de diferentes demônios é central. Essa é também a chave da expansão pentecostal, pois essa formulação permite falar diretamente para os destinatários do discurso.
Em suma, o crescimento pentecostal se alimenta das vantagens organizacionais e discursivas dos evangélicos e dos déficits católicos, e ocorre principalmente nos espaços em que o catolicismo, com sua lenta logística, falha em explicar o processo de metropolitização que caracteriza a América Latina: em cada novo bairro onde a igreja católica planeja chegar, já existem uma ou várias igrejas evangélicas. Esse processo também ocorre do campo para a cidade e da periferia para o centro.
Todas as igrejas evangélicas e, especialmente, os pentecostais também forjaram diferentes tipos de instituições educacionais, esportivas e, principalmente, instituições de produção cultural de massa, como editoras, gravadoras, plataformas midiáticas que, ao mesmo tempo que facilitam a atividade de proselitismo, dão densidade ao mundo evangélico criando denominadores transversais comuns.
Ainda não sabemos a extensão dos efeitos dessas transformações do campo religioso na vida política e na esfera pública. Os últimos acontecimentos em curso permitem supor que a politização dos pentecostais e boa parte dos evangélicos na América Latina se deu pela capacidade de desenvolver diversas e contingentes formas de mobilização política, que nos últimos anos foram orientadas para a intervenção política, nas mãos de tendências conservadoras.
No entanto, é preciso cautela antes de aderir sem problematizações à afirmação impressionista de que uma onda de fascismo evangélico tomou conta do continente. É imperativo prestar atenção aos momentos e modos dessa politização e sua interação com os contexto social mais geral, discernir quais devem ser as tarefas das forças progressistas diante das várias direções adotadas pelos evangélicos. Compreender as mudanças comportamentais, as demandas, os problemas reais, os modos de socialização, o papel das mídias digitais e dos modos de interação presencial. Na realidade atual, associar-se a grupos evangélicos é altamente atraente para boa parte dos políticos.
De outra parte, para os líderes desses grupos é importante converter pregação religiosa em poder político e assim converter, capturar a sociedade como um todo para os valores cristãos. E esses valores não são aleatórios. São os temas sensíveis, controversos e concretos como o casamento homoafetivo e a legalização do aborto, além do não reconhecimento à pluralidade religiosa, classificando outras vertentes como seitas, como é o caso da perseguição no Brasil às religiões de matriz africana.
Com os fundamentos da democracia em crise, especialmente decorrentes das denúncias de corrupção e incapacidade de responder a problemas concretos, com a erosão das alternativas da política tradicional, apelar para a identidade evangélica parece um bom negócio. Como a esquerda vai enfrentar isso?
Paradoxalmente, o avanço concreto das agendas dos direitos de gênero e diversidade na última década na América Latina contribuiu de modo direto para o fortalecimento dos projetos políticos evangélicos, como uma reação que não estava prevista. Tal agenda foi incorporada como bandeira de boa parte da esquerda. Já a direita assumiu os valores vinculados à família. Essa equação é difícil desmontar e conter. A ofensiva conservadora pareceu estar incubada enquanto o progresso de direitos tomava conta de políticas de Estado em diferentes países, patrocinadas pelo centro e pela esquerda. A contrariedade que vicejava nos subterrâneos contra a agenda emancipadora foi capitalizada em grande medida pelas forças evangélicas, dando potência às ambições políticas .
A influência política evangélica é muito mais forte e sólida por meio da transformação cultural e midiática e, não obstante, eficiente nos cálculos de captura das preferências eleitorais.
Como enfrentar essa nova realidade, reconhecendo as capacidades mobilizadoras e de inclusão social que essas igrejas mantém, respeitando a fé a identidade religiosa, mas ao mesmo tempo assegurando a preservação de direitos e emancipação é um desafio que a esquerda precisa compreender e encarar com urgência, talvez no mesmo grau de importância que as mudanças na ordem do mundo do trabalho, das tecnologias e das finanças.
Referências
FRESTON, Paul. “Pentecostalism in Latin America”. In Social Compass. Louvain: Groupe de Sciences Sociales des Religions, vol.45, nº 3, 1998, p. 337.
PADILLA, René. “Los evangélicos: Nuevos actores en el escenario politico latinoamericano”. In De la marginacion al compromiso. Quito: FTL, 1991, p. 5
MARIANO, Ricardo. “Os pentecostais e a teologia da prosperidade”. In Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP, 1996, nº 44, p. 24 e ss.
SEMÁN, Pablo- Pentecostalismo y política en América Latina- Ladiaria- 2019
(*) Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS, membro do Conselho do Observatório da Comunicação Pública e Diretora de Comunicação do INP. Publicado originalmente no site do INP.

créditos: Lucas Secundum