02 de março, 2020
CARTA ABERTA SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO
BANCO CENTRAL
Diante das últimas
notícias sobre o acordo costurado entre os presidentes da Câmara e do Senado,
no sentido de priorizar a votação da “Independência do Banco Central” para este
mês de março/2020, apensando-se os projetos que correm nas duas casas legislativas
(PLP 112/2019 e PLP 19/2019), a Auditoria Cidadã da Dívida, associação sem fins
lucrativos que há 20 anos investiga os mecanismos responsáveis pela geração de
dívida pública sem contrapartida alguma em investimentos de interesse da
sociedade ou do país, e por seu contínuo crescimento, apesar dos volumosos
pagamentos que nos últimos anos superaram a casa do trilhão de reais,
manifesta-se por meio da presente CARTA ABERTA, tendo em vista a estreita
relação entre o crescimento da dívida pública brasileira e a atuação do Banco
Central.
Verificamos que os
referidos projetos de lei pretendem tornar o Banco Central (BC) um ente autônomo,
sem vinculação ou subordinação a qualquer ministério, e aparentemente acima de
tudo e de todos. Pelo visto, o BC continuará subordinado somente ao BIS (banco
central dos bancos centrais), organização privada que comanda as finanças
mundiais, com sede na Suíça.
Segundo os projetos,
o BC terá autonomia para produzir suas próprias normas operacionais, sem
necessidade de lei votada no Congresso; ficará também acima do poder Executivo
(que sequer poderá demitir diretores do BC, independentemente dos danos que as
políticas adotadas provoquem à economia do país); e até acima da lei penal,
pois os atos de diretores, atuais e todos os anteriores, “não serão passíveis de
responsabilização por atos praticados no exercício de suas atribuições.”
A atribuição do BC
nos projetos fica resumida apenas à busca da “estabilidade de preços”,
ou seja, o controle inflacionário. Esse aspecto nos parece extremamente
preocupante, tendo em vista que dados oficiais comprovam que a inflação
brasileira tem decorrido do aumento dos preços administrados (energia elétrica,
água, combustíveis, transporte, plano de saúde etc.) e dos preços de alimentos
(devido à sazonalidade e erros de política agrícola). Assim, as ferramentas
usadas pelo BC, em especial o aumento (ou redução) da taxa de juros Selic, não
interfere no tipo de inflação verificado no Brasil. Apesar do atual patamar
reduzido da Selic (4,25% a.a.), decorrente da grave recessão fabricada
principalmente pela política monetária do BC, a taxa média dos juros da dívida
federal interna foi mais que o dobro; ficou em cerca de 9% a.a. em 2019; as
taxas de juros de mercado chegaram a ultrapassar 100% a.a.; os juros sobre
cartões de crédito alcançaram percentuais superiores a 300%a.a., enquanto na
maioria dos demais países do mundo, desde 2008 as taxas de juros têm ficado
próximas de zero ou até negativas! Os projetos de independência do BC garantem
completa autonomia operacional ao BC para seguir ou até aprofundar esses erros,
sem que nenhum outro poder possa interferir.
O PLP 112/2019
acrescenta competências às atribuições do BC, dentre as quais se destaca o
acatamento de “depósitos
voluntários”, cuja remuneração o próprio BC irá determinar. Na
prática, tais depósitos voluntários já estão ocorrendo há anos, e vêm sendo
remunerados diariamente aos bancos, por meio do uso abusivo das chamadas
”Operações Compromissadas” em volumes que já chegaram a ultrapassar R$1,3
Trilhão, o que não encontra paralelo em nenhum outro país. Essa benesse aos
bancos custou cerca de 1 TRILHÃO DE REAIS aos cofres públicos no período de
2009 a 2018, segundo dados do próprio balanço contábil do BC!
Enquanto R$ 1 trilhão
foi consumido para remunerar bancos sem previsão legal, recursos vitais
deixaram de chegar às necessidades urgentes da população. Milhares de
brasileiros e brasileiras estão morrendo à espera de uma cirurgia ou de um
simples atendimento médico, que não acontecem por falta de recursos para a
Saúde Pública. Milhões de crianças e jovens não têm tido a oportunidade de
desenvolver suas potencialidades, tendo o seu futuro comprometido, ou estão
sendo empurrados para o mundo das drogas e perdição, justamente por falta de
recursos para a Educação Pública Integral e de qualidade.
Não podemos nos
omitir diante da tentativa de “legalização” dessa remuneração injustificável
aos bancos. Essa tentativa já foi feita pelo BC em 2017, quando enviou ao
Congresso o PL 9.248/2017, projeto de um único artigo que cria a figura do
“depósito voluntário remunerado”. Tal projeto está parado, por pressão de
diversas entidades da sociedade civil, inclusive a Confederação Nacional das
Indústrias (CNI), que manifestou-se em defesa da indústria nacional, setor que
tem encolhido de forma preocupante, aprofundando o desemprego no país,
principalmente por causa das exorbitantes taxas de juros de mercado praticadas
no Brasil, as quais decorrem justamente da escassez de moeda gerada pela
esterilização de recursos, que ficam depositados no BC, sendo diariamente
remunerados, em vez de serem disponibilizados para empréstimos a juros
acessíveis.
Sob a propaganda da
“Independência do BC”, se tenta novamente “legalizar” o mecanismo de
remuneração diária da sobra de caixa dos bancos. Pretende-se “legalizar”
também a utilização de derivativos (swap) como instrumento de política cambial.
Tais contratos sigilosos já foram repudiados até em representação do TCU,
conforme TC-012.015/2003-0, e têm provocado prejuízos de dezenas de
bilhões de reais, que são pagos por toda a sociedade.
Tais mecanismos
transferem recursos públicos em montantes exorbitantes aos bancos, aumentam a
dívida pública e provocam recessão econômica para a economia real, tal como
ocorrido nessa grave crise que enfrentamos desde 2015. Tudo isso restará impune
e inalcançável pelas leis do país, caso venham a ser aprovados os projetos em
questão.
O funcionamento
distorcido do BC por meio desses mecanismos citados tem afrontado o art. 192 da
Constituição Federal, segundo o qual “O
sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a
servir aos interesses da coletividade, em todas as partes
que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis
complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital
estrangeiro nas instituições que o integram.”
O que precisamos é de
um Banco Central conectado à nação e a serviço dos interesses da coletividade,
como diz a Constituição, atuando de forma transparente e ética, e não de forma
opaca, sigilosa e independente, acima de tudo e de todos, como pretendem os
projetos que estão para ser votados no Congresso Nacional.
Diante do exposto,
inspirados nas diversas manifestações do Papa Francisco por um funcionamento
ético e humanizado da economia e suas instituições, manifestamos publicamente a
nossa posição contrária aos projetos PLP 112/2019 e PLP 19/2019, e apelamos à
consciência dos senhores e senhoras parlamentares para que rejeitem tais
projetos de “independência do BC”, tendo em vista os imensos riscos que tais
projetos representam para o país, e abram franco e aberto debate sobre o tema.
Brasília, 2 de março
de 2020
Maria Lucia Fattorelli
Coordenadora Nacional
da Auditoria Cidadã da Dívida
Coordenação Nacional
da Auditoria Cidadã da Dívida
SAUS, Quadra 5, Bloco
N, 1º andar – Brasília/DF – CEP:70070-939 – Edifício Ordem dos Advogados do
Brasil
Telefone (61)
2193-9731 – E-mail contato@auditoriacidada.org.br –
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