Por que a má-conduta de grandes empresas não recebe a devida atenção no Brasil dos parlamentares, do Estado, da Justiça?
...o que esses casos têm a ver com a Lava-Jato, a resposta é simples: nada.
O ano era 2014, ano de início da Operação Lava-Jato, quando a Coca-Cola começou a se beneficiar da manobra tributária que denunciamos, em parceria com O Joio e O Trigo. De lá até hoje, essa manobra fez o Brasil deixar de receber mais de R$4,3 bilhões.
Foi também em 2014 que a Movile adquiriu o iFood, uma startup que tinha apenas três anos de existência na época. Apesar de dominar mais de 80% do mercado de entregas atualmente, empresas de entregas como o iFood mantém entregadores trabalhando extenuantes 80 horas por semana, muitas vezes subnutridos e mal remunerados, enquanto se empenha em lobby contra os direitos trabalhistas básicos, como já denunciamos.
Em 2016, a Nestlé criou o canal de YouTube Receitas Nestlé. Como mostramos, novamente em parceria com O Joio e O Trigo, o canal anuncia receitas saudáveis para crianças com produtos como o Mucilon – apesar de eles conterem quantidades de açúcar superiores ao recomendável para crianças menores de dois anos.
Entre 2014 e 2020, a Lava-Jato dominou as manchetes. E foi com essa forcinha da grande mídia que ela moldou a política brasileira, contribuindo para o fortalecimento da direita e incubando a extrema-direita. Até que sua inevitável queda a desacreditou com o público. Enquanto à coisa pública, a má-conduta de empresas bilionárias passou quase incólume. Em especial, o escrutínio da grande imprensa é muito tímido comparado ao que sofreu a Petrobras.
Ora, a manobra tributária da Coca-Cola também fez os cofres públicos deixarem de receber bilhões de reais.. Inclusive, parece que os grandes protegidos pela Lava-Jato e seus excessos não foram os cidadãos brasileiros, mas os acionistas privados. Consultorias financeiras chegaram a calcular que o impacto financeiro negativo da Lava-Jato ao país foi de entre 1 e 1,5% do PIB ao ano. Cobrar corretamente os tributos da Coca-Cola destravaria o ambiente concorrencial do setor, arrecadaria mais tributos e provavelmente impactaria positivamente a economia. E não demandaria mais que uma mudança legal.
Já o modelo de trabalho adotado pelo iFood coloca a vida dos seus próprios entregadores, e até de demais motoristas e pedestres, em risco ao forçá-los a trabalhar com fome e por muitas horas em motos se esgueirando entre engarrafamentos nos grandes centros urbanos. E mesmo quando não morrem, uma geração de subempregados super-explorados é um mal em si mesmo, uma ferida no tecido social do país.
Empresas exageram números, perseguem cientistas e jogam a culpa em você para barrar nova proposta da Anvisa para os rótulos dos alimentos.
E a Nestlé? Na opinião popular, as mais graves violações são aquelas cometidas contra as crianças, corretamente vistas como indefesas e dependentes de especial proteção social. A imagem da criança indefesa atacada pela maldade dos adultos povoa o populismo penal do dia-a-dia da mídia. Mas o fato dos principais prejudicados pela Nestlé serem literalmente bebês não gera um átimo da comoção de algum caso famoso do populismo penal. Talvez porque seja a maior empresa de alimentos do mundo, uma multinacional com valor de mercado de 337 bilhões de dólares em 2023. Sentada sobre essa fortuna, a Nestlé pode se dar ao luxo de prejudicar milhões de crianças em países pobres vendendo produtos de qualidade mais baixa impunemente. Enquanto isso, mantém produtos dentro das especificações da Organização Mundial da Saúde nas prateleiras dos países europeus. Possivelmente porque nesses países há um entendimento de que a corrupção não é mais tolerável quando vem da iniciativa privada. E precisamos importar esse entendimento para que a vida dos bebês (e dos trabalhadores) seja mais valorizada por aqui.
Por:
Caio Almendra
Sábado, 20 De Abril De 2024
Editor de opinião - Intercept Brasil
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