(meritoocracia: trabalhadores mais bem dotados intelectualmente etc., alcança uma posição quem nasce numa determinada classe social.)
Em qual
encruzilhada estamos? O que nos pode salvar ou destruir por completo? Essas são
algumas indagações que nos levaram a pesquisar o quanto o neoliberalismo não é
apenas um modelo econômico, mas uma prisão de subjetividades. Por que repetimos
o que não é bom para nós e defendemos o que nos prejudica?
No
Brasil, na contrarreforma trabalhista, onde mais de 100 direitos foram
retirados e tantos outros alterados da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Dispositivo que só favorece a elite e
retira direitos, o neoliberalismo têm avançado “profundamente no mundo, até ser
definido como uma forma de vida”. Ela propõe uma reflexão sobre o porquê, desde
os anos 1970, essa política se impõe e observa que “isso só é possível
colonizando a subjetividade, com a manipulação dos afetos, como a angústia, a
culpa, o medo, o ódio”.
Na linha
de frente dessa manipulação, os meios de
comunicação, as redes sociais e as políticas de educação e saúde mental e
também as ciências biológicas capturadas pela indústria da medicalização. “O
neoliberalismo não é possível sem essa colonização, que responde pela
obediência inconsciente”.
O
filósofo e humanista francês Étienne de La Boétie (1530-1563) pensou
a sociedade na época dos absolutismos reais e alcunhou a expressão “servidão
voluntária”1. “Ele se perguntava por que muitos se submetiam ao rei. A
explicação naquele momento foi teológica: o rei é o herdeiro de Deus e, então,
há de servi-lo e obedecê-lo. Era uma obediência consciente e voluntária.
Depois, vieram as revoluções democráticas, os princípios de igualdade,
liberdade e fraternidade. Hoje, estamos frente ao mesmo problema, porque os
muitos se submetem a um, porém já não ao poder real do rei, mas sim ao poder
real que hoje são as corporações. A servidão já não é sequer registrada como
servidão porque estamos na presença de cidadãos que se creem livres. Além
disso, o cidadão no neoliberalismo não tem comida e casa garantidas, não tem
direitos. Então, por que tomamos atitudes que vão contra nossos próprios interesses?
Os
trabalhadores perdem seus direitos, seu trabalho, mas seguem comprando e
consumindo um discurso contra eles mesmos e que está a favor do capitalismo
financeiro, que prescinde de homens e mulheres. “Os trabalhadores seguem
subscrevendo e comprando como naturalizado esse discurso que logrou captar o
coração da subjetividade.”
A
meritocracia se fortalece na ideologia neoliberal. Uma narrativa que encontramos
todos os dias nos mais diversos meios e em variadas formas. Ela está nas
notícias da imprensa comercial, em postagens de empresas e especialistas de
recursos humanos e recrutadores, em profusão, nas redes sociais, em especial na
chamada rede de networking, o LinkedIn. Está em muitas falas políticas e nas
diversas esferas dos poderes republicanos – Executivos, Legislativos e
Judiciário.
A
produção cultural do capitalismo contemporâneo, criadora do culto à liberdade
do eu (ou individual), se ampara grandemente em técnicas de autoajuda e do
marketing que funcionam como imperativos sociais também. “Por exemplo, as
frases “você pode” e “você pode mais” simulam um ideal de liberdade, mas impõem
os piores e ilimitados sacrifícios. O que isso gera? Uma subjetividade culpada,
devedora”. A ovacionada “liberdade individual” é uma armadilha do sistema,
porque nada se faz sozinho.
O
neoliberalismo nos faz crer que somos donos das nossas vidas e do nosso
destino, reforçando palavras que hoje estão no dia a dia das pessoas, como
meritocracia, mérito, empreendedorismo, empreendedor de si. “Isso contribui
para uma precariedade laboral, para um servilismo jamais visto, a pobreza como
destino porque não há nenhuma mobilidade social baseada na meritocracia”.
A meritocracia,
como discurso do capitalismo contemporâneo, está baseada numa falsa premissa de
igualdade de oportunidades, quando ela só existe no final, e não no começo. “Se
se parte da igualdade na educação, na saúde, na habitação, depois sim pode haver
uma singularidade no esforço pessoal. A meritocracia é classista no
neoliberalismo, alcança uma posição quem nasce numa determinada classe social”.
Margaret
Thatcher, tem uma frase famosa onde diz, sobre a nova ordem capitalista, que
“não existe mais alternativa. É isso que existe”. A dama de ferro sabia o que
estava falando e já mostrava para todos o caminho servil que seria imposto à
sociedade mundial. Como sair dessa prisão ideológica é uma pergunta de todos
nós. Michel Foucault (1926-1984), o filósofo francês apontou que o
neoliberalismo vinha com um slogan perigoso e falso do fim da história e das
ideologias, ao mesmo tempo que rechaça a política. “Se acaba com a política
porque dizem que o moderno é uma questão de administração. O neoliberalismo se
transformou num sistema de administração das almas, do terror. Através de
controle e do disciplinamento”.
O
calcanhar de Aquiles do neoliberalismo é justamente a política, por isso a
demonizam tanto, vinculam-na à corrupção, à violência. A saída, só pode ser política, é a organização da
sociedade, porque os ideólogos neoliberais sabem que nesse campo da disputa e
reflexão de ideias eles não têm nada a dizer.
Não é à
toa, portanto, o ataque às organizações políticas e, principalmente, aos
sindicatos de trabalhadores, porque é neles que “vamos poder encontrar a saída
para a humanidade”. O poder trabalha com alguns sentimentos há muito
tempo, “diria que mesmo antes do nazismo. Um dos afetos que mais manipulam é o
da angústia, porque significa desamparo, indefinição, e isso traz a obediência
inconsciente. Trabalha-se com o medo, a ameaça, a culpa e o ódio. Essas são as
‘paixões’ privilegiadas do neoliberalismo”.
Outras
paixões também são usadas, como a uniformidade de pertencer a uma massa, de
pertencer de forma imaginária, e não real, pela via da identificação, de
parecer a alguma coisa. “O poder não quer sindicalismo, não quer a
organização dos trabalhadores. Um sindicalismo organizado e um conjunto de
trabalhadores que façam política e tenham pensamento crítico. O poder quer uma
cultura de individualidades, de indivíduos, são cidadãos, consumidores,
“odiadores”, sem pensamento crítico que forma a massa. A massa está conformada
sobretudo pelos meios de comunicação que são corporativos, não são democráticos
e são empresas. Não são democráticos não apenas pela concentração econômica,
mas pela concentração simbólica. Não há pluralidade de vozes, é um discurso
único, agora temos as redes sociais para ajudar a propagar esse discurso. Tudo
isso impõe formas de vida.”
Rechaçar a política, que significa o diálogo entre posições diferentes e não o aniquilamento do que é diferente de nós, significa que colocamos no lugar a intolerância, a violência moral e física.
A
morte da política, sempre anunciada pelos cânones neoliberais, retorna à
sociedade como ódio, como destruição física e moral. “É o homem lobo do homem,
uma guerra de todos contra todos, já não se trata mais de adversários
políticos, mas de uma guerra contra inimigos. Porque a política foi demonizada
como corrupção. O conflito político se transformou em conflito moral, entre
bons e maus. Há um estímulo ao ódio, a mesma técnica utilizada pelo nazismo do
inimigo interno, da demonização, à época, contra o judeu, os ciganos, os gays,
hoje contra os dirigentes sociais, dirigentes políticos e sindicais. O ódio é a
ferramenta principal do neoliberalismo porque é o modo de aniquilar as
diferenças”.
Jacques
Lacan (1901-1981), psicanalista francês, define o capitalismo como um discurso
ilimitado. O capitalismo, na sua expressão neoliberal, é um discurso fanático.
“Podemos dizer que é um vírus que foi tomando todos os aspectos da cultura,
quase uma estrutura rizomática, que foi se metendo nas formas de vida, no
corpo, nas relações sociais, amorosas, de amizade, laborais, foi tomando os
governos. Então, foi tomando o coração da subjetividade”.
“O
destino da humanidade vai depender da luta política por outras formas de vida.
O que vemos é uma direita desinibida, o neofascismo que já não necessita sequer
de simulacros democráticos. O que vemos surgir é uma ultradireita “odiadora”,
antissocial, mas também vemos crescer uma oposição que luta, se organiza, que
articula o feminismo, formas democráticas, nacionais e populares. Dessa luta
vai depender o destino da humanidade.
Por: Psicanalista
Nora Merlin – docente e pesquisadora da
Universidade de Buenos Aires, mestre em Ciências Políticas e autora dos livros
“Populismo e Psicoanálisis”, “La colonización de la Subjetividad, médios
massivos de comunicación em la época del biomercado”, “Mentir y colonizar:
obediencia inconsciente en la subjetividad neoliberal” e “La reinvención
democrática. Un giro afectivo”, todos editados pela Letra Viva –, que o
neoliberalismo é uma produção de subjetividade, de um homem “novo” e que,
portanto, requer uma nova antropologia.
Créditos:
ROSÂNGELA RIBEIRO GIL- MANUELLA SOARES Outras Palavras São Paulo (SP) (Brasil) -
9 de fev de 2021 às 18:14 - https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/cultura/68480/ilusao-neoliberal-de-independencia-contribui-para-servidao-jamais-vista-diz-psicanalista?fbclid=IwAR22rGmOi36UlKATUyXH0TefHwnzsrTzTmlPFqp2MSni0iQP1Z_ZFR0Basc
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