Carl Schmitt definia a política como aquele campo da atividade humana no qual, não sendo possível nenhuma arbitragem racional dos conflitos, só resta juntar os amigos e partir para o pau com os inimigos. Invertendo a célebre fórmula de Clausewitz, a política tornava-se assim uma continuação da guerra por outros meios. Nessa perspectiva, o que quer que se dissesse a respeito deveria ser julgado não por sua veracidade ou falsidade, mas pela dose de reforço que desse aos "amigos" e pelo mal que infligisse aos "inimigos".
A quase totalidade da bibliografia nacional sobre o golpe de Estado de 1964 segue rigorosamente essa receita. A hipótese de discutir racionalmente os argumentos dos golpistas é afastada in limine como "extremismo de direita" ou como adesão retroativa ao movimento que, com forte apoio popular, derrubou João Goulart e inaugurou a era dos presidentes militares. A única função que resta para o historiador é, portanto, reforçar o elemento macabro na lista dos crimes de um dos lados e enaltecer os do outro lado como boas ações incompreendidas.
A universidade brasileira tem nisso uma das suas principais missões educacionais. Não espanta que para cumpri-la tenha tido de reduzir mais de cinqüenta por cento dos seus estudantes ao estado de analfabetismo funcional,[1] tornando-se assim uma organização criminosa empenhada na prática da fraude em grande escala.
A ciência política começou quando Sócrates, Platão e Aristóteles inauguraram a distinção entre o discurso do agente político e o do observador científico. Essa distinção não poderia ser mais clara nem mais incontornável: o primeiro destina-se a fazer com que determinadas coisas aconteçam, o segundo a compreender o que acontece. O próprio agente político, quando fala entre amigos, tem de ser um pouco cientista para dar a eles uma visão realista do estado de coisas antes de lhes dizer o que devem fazer. Levada às suas últimas conseqüências, a regra schmittiana resulta em suprimir toda possibilidade de um conhecimento objetivo do estado de coisas e em meter os amigos numa enrascada dos diabos. Ninguém praticou isso com mais dedicação do que os comunistas, que por isso mesmo acabaram matando mais comunistas do que todas as ditaduras de direita reunidas e somadas. Até hoje ninguém contestou satisfatoriamente a minha assertiva de que nos anos 30-40 do século passado um marxista de estrita observância teria maior probabilidade estatística de sobreviver na Espanha de Franco ou no Portugal de Salazar do que em Moscou.
Quase toda a bibliografia nacional sobre o golpe de 1964 e sobre o regime militar que se lhe sucedeu só tem, portanto, o valor de um documento bruto sobre a visão que uma das facções em luta tinha (e tem) dos acontecimentos. Como estudo científico-objetivo, não vale nada. Que alguns poucos livros se oponham a essa uniformidade consensual não melhora em nada a situação, pois expressam antes a reação enfática de uma minoria indignada do que um sério desejo de compreender o que se passou. E a desproporção entre ataque e defesa se torna ainda mais significativa porque – notem – os governos militares, com todos os recursos que tinham à mão, não espalharam um volume de propaganda anti-Goulart – ou anticomunista -- que chegasse a um milésimo do que se escreveu e publicou contra eles depois que foram alijados do poder. Mesmo em plena ditadura, a produção de livros e jornais contrários ao regime, muitos abertamente pró-comunistas, já ultrapassava de longe o volume modesto da propaganda oficial, sem contar o fato de que esta se limitava a patriotadas genéricas e inócuas sem nenhum teor de ataque ou denúncia. O governo, enfim, cedeu à esquerda o monopólio do uso da linguagem, e o fez precisamente nos anos em que os setores mais hábeis do movimento comunista, em vez de se suicidar nas guerrilhas, liam Antonio Gramsci e se empenhavam em ocupar espaços na mídia e nas universidade para aí empreender a grande guerra cultural contra um adversário que a ignorava por completo.
É inteiramente normal que no dia seguinte à queda de um regime ele seja demonizado, mas é ainda mais normal que a passagem do tempo favoreça abordagens mais realistas e equilibradas. Este ano o golpe de 1964 completa meio século de história, e não só a indústria da vituperação continua cada vez mais próspera, alimentada agora por uma cornucópia de verbas estatais, mas o simples impulso de sugerir alguma moderação ou de pedir equanimidade na averiguação dos delitos de parte a parte é recebido como virtualmente criminoso e digno de punição. Muitos acusam nele, abertamente, a preparação de um outro golpe, o anúncio de uma nova ditadura, e, com base nesse hiperbolismo forçado até o último grau, legitimam o uso de meios ditatoriais para evitá-la.
Num país onde setenta mil cidadãos são assassinados por ano, a morte de quatrocentos terroristas meio século atrás é ainda alardeada como o mais terrível – e o mais recente – dos traumas históricos possíveis. Chega-se mesmo a exclamar que o Brasil só não encontrou o caminho da perfeita democracia porque os "crimes da ditadura" ainda não foram suficientemente investigados e denunciados.[2]
Nessas condições, não é de estranhar que aspectos fundamentais da história daquele período fossem varridos para baixo do tapete, sufocados e proibidos, como se nunca tivessem existido e como se mencioná-los fosse o maior dos crimes. Eis alguns exemplos:
1. Qual a dimensão real da ameaça comunista no Brasil dos anos 60? A norma geral é proclamar, a priori, que essa ameaça era inexistente ou irrisória. Mas as mesmas pessoas que assim dizem são as primeiras a apontar o grande número de oficiais comunistas e pró-comunistas que o novo regime expulsou das Forças Armadas. São também as primeiras a cantar as glórias do esquema guerrilheiro que Fidel Castro havia espalhado por todo o continente americano. Conta-se entre lágrimas a história da Operação Condor, mas evita-se cuidadosamente mencionar que ela foi apenas uma reação tardia à fundação da OLAS, a Operação Latino-Americana de Solidariedade, comando-geral das guerrilhas no continente, que já havia matado milhares de pessoas quando os governos da região decidiram juntar esforços para combatê-la.
2. À profusão de investigações e denúncias sobre a ação da CIA no Brasil, entremeadas de mitos e lendas, corresponde, em simetria oposta, o total desinteresse ou a proibição tácita de averiguar a presença da KGB no país na mesma época. A abertura dos arquivos de Moscou, que tão profundamente modificou o panorama da sovietologia no mundo, foi recebida no Brasil como uma obscenidade da qual não se deveria falar.
3. A balela de que as guerrilhas surgiram em reação à derrubada do presidente Goulart continua sendo repetida com a maior sem-cerimônia, mesmo sabendo-se que desde 1961 já havia no Brasil guerrilhas subsidiadas e orientadas pelo governo cubano. Nesse ponto, aliás, o simples fato de que o presidente Goulart, recebendo em mãos as provas do que se passava, escondesse tudo e remetesse em segredo a Fidel Castro em vez de mandar investigar essa ostensiva intervenção estrangeira armada, já bastava para tornar sua derrubada inevitável e até obrigatória.[3] No entanto, até hoje o golpe é carimbado como um ato de força "contra um presidente legalmente eleito", como se Goulart tivesse sido derrubado por ter sido eleito e não por ter cometido um crime de alta traição.
4. Qual foi exatamente a participação de exilados e de outros comunistas brasileiros na polícia política de Fidel Castro? Se o sr. José Dirceu foi oficial do serviço secreto militar cubano, é quase impossível que ele tenha sido uma exceção solitária. Quantos comunistas brasileiros foram co-responsáveis por matanças e torturas de cubanos?
5. Passaram-se doze anos desde que divulguei neste país o livro, publicado uma década e meia antes disso, em que o chefe do escritório da KGB no Brasil, Ladislav Bittman, confessava ter falsificado documentos para induzir a mídia local, com sucesso, a acreditar que o governo dos EUA havia planejado e orientado o golpe militar. Desde então nem um único jornalista ou historiador se interessou sequer em ler o livro, quanto mais em tentar uma entrevista com Bittman ou uma averiguação nos arquivos soviéticos. São, no total, vinte e sete anos de ocultação proposital.
6. No mesmo livro, Bittman afirmou que a KGB tinha na sua folha de pagamentos, em 1964, quase uma centena de jornalistas brasileiros. Alguém se interessou em investigar quem eram eles? Encobertos sob o silêncio obsequioso de seus colegas e dos empresários de mídia, aqueles dentre eles que não morreram estão decerto em plena atividade, mentindo, ocultando e falsificando.
Esses seis exemplos bastam para evidenciar que a história oficial do golpe de 1964 é criminosamente seletiva, recortada para servir de instrumento de propaganda e não para esclarecer alguma coisa. É a historiografia schmittiana em ação, ajudando os amigos e assassinando as reputações dos inimigos.
Um comentário:
Se o Brasil tivesse uma KGB no Regime Militar, talvez teria sido chamada de KGBranda!
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