segunda-feira, 3 de março de 2014

José Dirceu, João Goulart, Cuba ¿Qué pasa, compañero?

Novos documentos revelam detalhes da
ajuda de Cuba aos guerrilheiros brasileiros


Consuelo Dieguez

 
Militantes presos em Caparaó: treinamento cubano não refletia a realidade da guerrilha no Brasil
A participação de Cuba na resistência armada à ditadura no Brasil povoou as fantasias românticas da esquerda e atiçou a repressão ao que se supunha ser uma ameaçadora expansão da revolução de Fidel Castro. Ainda assim, sempre foi assunto tratado com reserva, e praticamente banido das discussões sobre os anos que se seguiram ao golpe de 1964. Coube à pesquisadora Denise Rollemberg, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lançar luzes sobre esse período nebuloso. Ela acaba de concluir sua tese de doutorado, "O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro", na qual esmiúça a ajuda do governo de Fidel a grupos brasileiros de esquerda, dos anos 60 até a metade dos 70. Mais do que isso, o trabalho dá uma dimensão inédita ao desastre provocado por essa ajuda cubana, que empurrou para a morte dezenas de militantes do movimento guerrilheiro.
Durante dois anos Denise fuçou os arquivos do Dops, debruçou-se sobre documentos militares e colheu depoimentos preciosos que trazem à tona detalhes do patrocínio cubano a três projetos de guerrilha no Brasil – embora se notem algumas lacunas clamorosas, como a ausência do relato do presidente do PT, José Dirceu, que recebeu treinamento de guerrilha em Cuba e não foi ouvido pela autora. O primeiro auxílio de Fidel foi no governo João Goulart, por intermédio do apoio às Ligas Camponesas, lendário movimento rural chefiado por Francisco Julião. A outra ajuda de Cuba aconteceu entre 1966 e 1967 e teve como protagonista o ex-governador Leonel Brizola, na época exilado no Uruguai. Finalmente, entre 1969 e 1973, Cuba treinou militantes brasileiros das organizações de esquerda que seguiram o caminho da luta armada, principalmente a Aliança Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Quanto Cuba gastou nessas investidas não há como quantificar.

Claudio Rossi
José Dirceu, presidente do PT e líder do Grupo Primavera:"Os erros foram só nossos"

O trabalho de Denise desvenda cada passo da ofensiva de Fidel Castro no Brasil. A aproximação com as Ligas Camponesas, por exemplo, deu-se logo após a revolução cubana, em 1959. As ligas eram um movimento essencialmente agrário, sediado no Nordeste mas espalhado por vários Estados. Seu slogan, "Reforma agrária na lei ou na marra", sintetizava a tensão política do país no início dos anos 60. Cuba despejou uma bolada de dinheiro na organização e treinou vários de seus militantes, numa movimentação logo percebida pela comunidade de informação. Os documentos do Dops, o temido Departamento da Ordem Política e Social, encontrados por Denise Rollemberg no Arquivo Público do Rio de Janeiro, atestam que desde 1961 o órgão acompanhava atentamente as estreitas relações de Cuba com as ligas. A papelada registra também cursos preparatórios de guerrilha em vários pontos do país. O apoio cubano concretizou-se no fornecimento de armas e dinheiro, além da compra de fazendas em Goiás, Acre, Bahia e Pernambuco para funcionar como campos de treinamento.

Com a desarticulação das ligas pela ditadura, as baterias de Cuba voltaram-se para a resistência liderada por Leonel Brizola no Uruguai. O grupo era composto de lideranças do período pré-64, principalmente sargentos e marinheiros expulsos das Forças Armadas. Brizola, inicialmente, era contra a organização de guerrilhas sob orientação de Cuba e planejava invadir o Brasil pelo Rio Grande do Sul. O sucesso da ação seria garantido pela adesão dos militares insatisfeitos com o golpe. Esse levante, como se sabe, ficou na imaginação do ex-governador, que acabou concordando em aceitar a ajuda cubana.
Os arquivos militares da época (veja documento abaixo) relatam o patrocínio de Fidel Castro a três focos guerrilheiros a partir de 1966, tendo o ex-governador à frente. Um em Mato Grosso, próximo à Bolívia, serviria de apoio ao grupo de Che Guevara. Outro no norte de Goiás, e o mais famoso deles na Serra do Caparaó, entre Minas Gerais e Espírito Santo. Avelino Capitani, 60 anos, ex-dirigente da Associação de Marinheiros, hoje vivendo em Porto Alegre, foi um dos primeiros militantes brasileiros a ser treinados em Cuba. Com formação militar, ele lembra que o treinamento era uma grande bobagem. "Parecia brincadeira. O Exército brasileiro era muito mais rigoroso", afirma.

Nelio Rodrigues
O ex-governador Leonel Brizola e documentos do Ex�rcito que mostram sua liga��o com Cuba: originalmente contra a ajuda externa, teve apoio da ilha na organiza��o da resist�ncia
Ao retornar ao Brasil, Capitani foi mandado para Caparaó. Mas o movimento foi abortado ainda na fase de treinamento. Sem dinheiro para a compra de alimentos, remédios e munição, os catorze guerrilheiros caíram doentes. Num desfecho patético para quem acreditava escrever uma página heróica da História brasileira, foram descobertos por um guarda florestal, denunciados e presos, sem resistência. "Mesmo que o Exército não nos descobrisse, o movimento teria fracassado simplesmente porque não havia população na área. Queríamos fazer a revolução sem as massas", comenta. A desorganização era tanta que os focos liderados por Brizola são até hoje motivo de controvérsia. Pesa sobre o líder do PDT a suspeita recorrente de ter embolsado o financiamento de Fidel – o que o ex-governador sempre negou. No entanto, ouvido por VEJA na quarta-feira passada, Capitani revelou ter trazido pessoalmente dinheiro para ser entregue a ele. "Eram 25.000 dólares numa caixa de xadrez", disse. "Mas o dinheiro nunca chegou para a guerrilha." Ou seja, sumiu. O deputado Neiva Moreira, que na época fazia a ponte entre Fidel e Brizola, nega a versão de Capitani: "Nós nunca recebemos dinheiro. Cuba só ajudou com treinamento".
Nada, no entanto, foi mais desastrado que a terceira investida bancada por Cuba. Os contatos foram feitos com as organizações armadas de esquerda, principalmente a ALN, de Carlos Marighella. Carlos Eugênio Sarmento da Paz, hoje um professor de música de 50 anos, é o único comandante vivo da ALN. Ele conta que, logo que chegou a Cuba, notou que a ação era absolutamente ineficaz. "Era ridículo. Íamos para a mata, mas dormíamos em barracões, com camas e colchões. Diariamente caminhões do Exército cubano nos levavam comida." O treinamento virou armadilha. O guerrilheiro despreparado acreditava poder enfrentar o Exército no Brasil. Assinava, com isso, sua sentença de morte.
A mística que envolvia a experiência do treinamento em Cuba não se limitava aos militantes de esquerda. A documentação revelada por Denise mostra o tamanho da preocupação dos militares brasileiros com os guerrilheiros treinados na ilha. Em 1972, o Exército distribuiu dossiê detalhado com fotos de 219 militantes treinados ou suspeitos de ter cumprido treinamento, classificando-os como terroristas de alta periculosidade. Ou seja, o grupo era duplamente vulnerável: por ser despreparado e por ser considerado perigoso. "O índice de sobrevivência de quem ficou no Brasil é muito maior que o dos que foram para Cuba", afirma o ex-guerrilheiro e agora economista Domingos Fernandes, um dos últimos a freqüentar as aulas dos cubanos. 

Liane Neves
O ex-marinheiro Avelino Capitani: 25 000 dólarespara Brizola

Mas como explicar os problemas da ajuda cubana? Denise Rollemberg conclui que, no final da década de 60, a exportação da revolução já era uma lenda. "O treinamento servia mesmo para mostrar à população cubana que Cuba era um sucesso internacional", diz. O resultado foi trágico. Uma das histórias mais dramáticas relatadas por Denise é o massacre do Grupo Primavera. Essa facção tinha entre seus líderes o hoje presidente do PT, José Dirceu. Rompida com a ALN, aproximou-se muito do governo cubano durante o período de treinamento. Por essa razão, dizia-se que era um grupo mais bem preparado que os outros. Traídos por um informante, os militantes do Grupo Primavera foram duramente perseguidos quando começaram a voltar ao país, em 1971. Em menos de um ano, 22 de seus 28 integrantes estavam mortos. Dirceu, no entanto, discorda da tese que atribui a Cuba o fracasso da guerrilha. "Todo mundo sabia o que estava fazendo", afirma. "Os erros foram nossos."

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