sábado, 5 de setembro de 2020

O cemitério clandestino onde a ditadura militar escondeu as ossadas de vítimas da repressão: Vala de Perus

 REVELADO HÁ 30 ANOS

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Armados de pás, picaretas e carrinhos de obra, operários reunidos no Cemitério Dom Bosco, em Perus, na Zona Oeste de São Paulo, removiam a terra de um descampado onde, oficialmente, ninguém havia sido enterrado. Para todos os efeitos, o gramado nos fundos da administração, perto do muro do sepulcrácio, sempre foi um terreno ocioso. Entretanto, quanto mais os homens cavavam, mais encontravam sacos de plástico cheios de ossos humanos, além de crânios e fêmures dispersos. 

Veja as páginas do GLOBO sobre a Vala de Perus, desde 1990

Naquela manhã de 4 de setembro de 1990, funcionários do serviço funerário público, além de jornalistas e da então prefeita, Luiza Erundina (PT), assistiam, com os olhos arregalados, à revelação de um cemitério clandestino criado por agentes do Estado durante a ditadura militar. No total, foram encontrados 1.049 sacos com ossadas de pessoas enterradas como indigentes ou com nomes trocados, ao longo de uma vala de 30 metros de extensão, com 50 centímetros de largura e 2,70 metros de profundidade.

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Eram restos mortais de vítimas dos órgãos de repressão política, dos esquadrões da morte formados por policiais militares durante o regime e até mesmo da epidemia de meningite em São Paulo que os generais tentaram esconder, no início dos anos 70. Há exatos 30 anos, o Brasil encontrava, no cemitério construído em 1969, durante a gestão de Paulo Maluf na prefeitura paulistana, a prova de um grande sistema de ocultação de cadáveres. Um local que ficou conhecido como Vala de Perus

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Escavação da vala clandestina de Perus: memórias da ditadura

Para marcar as três décadas desde a revelação, o Instituto Vladimir Herzog está lançando o projeto "Vala de Perus: uma biografia", escrito pelo jornalista Camilo Vannuchi. Dividida em oito capítulos, a iniciativa resgata, com textos e fotos, a descoberta do cemitério clandestino, explica por que a prefeitura de São Paulo criou uma vala para esconder corpos de vítimas da repressão, detalha o trabalho de investigação das ossadas e descreve quem são os identificados até agora. Entre eles, Aluísio Palhano Pedreira Ferreira, Frederico Eduardo Mayr, Flávio Carvalho Molina e os irmãos Denis e Dimas Casemiro. Todos militantes de oposição à ditadura que eram considerados desaparecidos até sua identificação.

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- A descoberta da Vala de Perus foi uma vitória sobre o esquecimento. O local é a prova de como os crimes contra os perseguidos políticos se unem a assassinatos cometidos pelos policiais dos esquadrões da morte durante o regime e mesmo depois - analisa o filósofo Lucas Paolo Vilalta, coordenador da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog. - Num momento em que enfrentamos o negacionismo, com um governo que faz apologia à ditadura, é importante trazer a verdade, a História. A ditadura cometeu uma série de violações aos direitos humanos. Muitas famílias jamais conseguiram sequer enterrar seus mortos.

A descoberta da Vala de Perus foi notícia de primeira página em todos os jornais. Mas, naquela manhã fria de 30 anos atrás, nem todas as pessoas reunidas ao redor daquela cova coletiva pareciam surpresas com o que estavam testemunhando.

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Página do GLOBO de 5 de setembro de 1990

Nos anos 70, os cadáveres das vítimas iam sendo enterrados com nomes falsos ou como indigentes em covas do Cemitério Dom Bosco. Segundo o padrão, após três anos sem que nenhum familiar reclamasse as ossadas, os restos mortais eram exumados para dar lugar a novos corpos e, então, enterrados novamente, na mesma sepultura, mas num patamar um pouco mais fundo. Contudo, em 1976, houve uma exumação em massa de ossadas que não foi documentada. Os restos de mais de mil pessoas foram removidos sem registro do novo paradeiro.

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Antônio Pires Eustáquio, o Toninho, era uma das pessoas que, na manhã de 4 de setembro de 1990, não estava nada surpresa. De acordo com o primeiro capítulo do projeto "Vala de Perus: uma biografia", após assumir a administração do cemitério, em 1978, ele soube da exumação em massa de dois anos antes e ficou intrigado. Muitas pessoas tiveram seus restos mortais exumados e colocados em algum lugar desconhecido. Mas quantas? Por quê? E onde estavam aqueles remanescentes?

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O guerrilheiro Flavio Molina e o atestado de óbito, com nome falso

Cruzando documentos, Toninho chegou ao número aproximado de 1500 nomes e, depois de muito assuntar funcionários mais antigos, arrancou de um deles o local secreto das ossadas. Paralalemente, desde que assumira a administração, ele vinha sendo procurado por familiares de vítimas da repressão que sabiam que seus entes haviam sido enterrados no Dom Bosco. Em 1981, ele chegou a mostrar o local ao engenheiro Gilberto Molina, que tinha provas de  que seu irmão, o guerrilheiro Flavio Molina, tinha sido enterrado no Cemitério Dom Bosco com o nome falso de Álvaro Lopes Peralta.

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Mas, àquela época, o Brasil ainda era governado por uma ditadura, o Departamento de Ordem Política Social (Dops) continuava atuante e o governador de São Paulo era ninguém menos que Paulo Maluf, o político aliado da ditadura que, quando prefeito da capital paulistana, comandou a construção do sepulcrário de Perus. Ou seja, não havia condições para revelar a vala clandestina naquele momento. 

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A Vala de Perus, no dia em que foi revelada, em 4 de setembro de 1990

O jornalista Caco Barcellos, da Rede Globo, era outro que não ficou surpreso quando foi revelada a vala clandestina de Perus. Meses antes, quando pesquisava informações sobre o livro "Rota 66: A história da polícia que mata" (1992), ele esbarrou com documentos dando conta de que vítimas da repressão política estavam enterradas no mesmo local desconhecido onde haviam sido depositadas as ossadas de muitos dos mortos pelos grupos de extermínio formados por policiais da Rondas Extensivas Tobias de Aguiar (Rotas), a "tropa de elite" da PM de São Paulo.

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Foi graças ao contato do jornalista com Toninho Eustáquio que a terra começou a ser remexida há 30 anos. Motivado por Barcellos, o administrador do Dom Bosco decidiu pedir autorização à superintendência do serviço funerário para escavar o gramado atrás de seu escritório, com o pretexto de construir ali um novo ossário.

As imagens daquele dia provocaram espanto em um país recém-saído de seu maior pesadelo: uma época em que as pessoas eram presas sem direito a advogado e levadas para celas sem conhecimento de seus parentes. Em que muitos foram torturados e mortos por agentes do Estado, sem julgamento, em porões secretos de edifícios públicos. E em que tantos foram enterrados numa vala clandestina, em um cemitério para indigentes da Zona Oeste de São Paulo.

E, agora, décadas depois, ainda tem quem diga que nada disso aconteceu.

Sacos plásticos com ossadas de vítimas da ditadura, na Vala de Perus

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