quinta-feira, 23 de julho de 2020

Bolsonaro, a dimensão colonial


Apoio dos mais ricos ao deputado revela como estão presentes, entre as elites, ideias de opressão dos pobres, submissão ao estrangeiro branco e predação da natureza. Ele é quem nos fala de suas façanhas. É ele também, quem relata o que decidiu aos índios e negros, raramente lhes dando a palavra de registro de suas próprias falas. O que a documentação copiosíssima nos conta é a versão do dominador.” 

O sistema político brasileiro é cindido na origem. Ora é puxado pelo populismo no executivo, ora pelo parlamentarismo conservador elitista, este último com apoio do judiciário e das forças armadas quando necessário. Mestre Celso Furtado já nos alertava sobre a característica inata de um legislativo que, controlado pelas oligarquias rurais desde a época colonial, impediria quaisquer tipos de reformas de base. 

A questão atual é a mesma de sempre…

A evolução dos dois últimos séculos para os dias atuais evidencia um flagrante continuísmo do sistema desigual e predatório desenvolvido no Brasil, tanto na sua dimensão social como ecológica. Não faltam fatos históricos desta continuidade, tanto na repressão às periferias urbanas como no meio rural. Ao exemplo do avanço das commodities para o centro-oeste e Amazônia sob o mesmo modelo predatório e violento ocorrido na Mata Atlântica no século retrasado. O crime ambiental de Mariana completa dois anos sem qualquer solução. A questão ambiental é fundamentalmente uma problemática humana.

Destaca-se a Lei de Terras de 1850, fundamental para instituir a propriedade privada sem qualquer tipo de alteração na estrutura fundiária ou o fomento aos pequenos lavradores, posseiros ou escravos libertos. 
Mesmo a Lei Eusébio de Queirós que proibiu o comércio escravista (curiosamente publicada doze dias antes da promulgação da Lei de Terras), foi elaborada cuidadosamente para tirar as responsabilidades da elite rural em relação aos escravos. Um dos casos de apoio mútuo entre a monarquia e a elite escravocrata ocorreu no episódio da tentativa dos EUA importarem seus escravos para a Amazônia. 

O racismo é parte de um sistema maior de dominação e, seja nas antigas metrópoles ou nas antigas colônias, todo país com tal herança é um país racista. Entretanto, no Brasil a questão racial é uma construção social que permeia a sociedade em sua totalidade.
A ideia girava em torno de “uma necessidade absoluta de que os negros libertos [fossem] transportados para fora da jurisdição dos Estados Unidos, onde jamais poderão desfrutar de igualdade política ou social”. A proposta lastreava a pretensão de dominação territorial norteamericana que, contudo, acabou sendo vetada por Dom Pedro II. Havia a necessidade de proteger o ciclo econômico da borracha, em franca expansão. 

Ainda assim, os EUA realizariam uma contínua campanha a favor do livre comércio na maior bacia hidrográfica do mundo.Uma das questões mais importante da época girava em torno da ideia de “raças” e as implicações nacionalistas inspiradas pelas abordagens norteamericanas e europeias de eugenia. Em paralelo à preocupação da elite rural com as crescentes revoltas escravistas, a questão racial foi o pano de fundo ao então embrionário meio intelectual brasileiro. As nascentes instituições educacionais da época eram palco privilegiado deste debate, cujo objetivo principal era o estabelecimento de critérios diferenciados de cidadania. Isso se traduz na abordagem da incapacidade dos negros e mestiços ao trabalho livre, o que serviu como uma das justificativas à imigração europeia.

Com uma lógica arcaica baseada na abertura de áreas de plantio por meio do fogo, da usurpação das terras de indígenas e de pequenos posseiros, o sistema(?) agropecuário era improdutivo e predatório. A extração madeireira completava o ciclo exploratório, pois esta não somente fornecia lenha doméstica e para a mineração, como também para o avanço da grande lavoura por meio das suas cinzas.   como argumenta o historiador Warren Dean, as elites rurais do centro sul, especialmente as fluminenses, instigadas pelo ciclo cafeeiro, estabeleceriam uma estratégia calcada em quatro movimentos.

Em primeiro lugar, a elite forçaria manutenção da escravidão até as últimas possibilidades: a Coroa portuguesa tinha a intenção de extinguir o tráfico de escravos, fato este que já ocorria em outras colônias conjuntamente à crescente pressão britânica. Por outro lado, a expansão do café e a intensificação do tráfico escravista seguiram. Havia resistência ao uso de técnicas para melhorias produtivas, causando não somente a sobre-exploração do trabalho escravo como a expansão da grande lavoura sobre os ecossistemas. Adicionando o fato de que foi a escravidão, e não o café, a “atividade econômica” mais rentável da época para baronato rural;  

Em segundo lugar, as elites acabariam com os obstáculos ao monopólio privado sobre terras públicas: ao final do século XVIII houve uma tentativa de maior controle sobre as terras da Coroa em relação ao regime de sesmarias, nada mais que um sistema de doação de terras públicas às elites rurais. Neste período surgiu uma corrente de pensadores reformistas que defendiam a necessidade de fixação dos limites das propriedades, parcelamento para pequenos posseiros e escravos libertos, reivindicação de terras abandonadas e a promulgação de políticas de conservação mais sólidas. Seria hoje o que chamamos de reforma agrária e, obviamente, nunca passaria do campo das ideias da época, enquanto a realidade mostrava um aumento sem precedentes de aberturas de terras e intensificação do tráfico escravista para nutrir o ciclo cafeeiro;

Em terceiro, temos a remoção de indígenas das terras e recrutamento forçado para o trabalho: aqui não há conflitos entre elites rurais, Coroa ou mesmo as correntes liberais da época. A escravidão de povos africanos não significava alívio algum aos indígenas, forçados às constantes fugas pelo avanço do plantation. A lógica da assimilação ou extinção seguia: capturados para trabalhos forçados, crianças vendidas, mulheres prostituídas, fixação das ‘aldeias’, algo semelhante ao processo de genocídio indígena durante a conquista do oeste nos EUAxxii. A elite rural organizava milícias caçadoras de indígenas, comumente chamados de bugreiros, com atuação em São Pauloxxiii e em Santa Catarinaxxiv. Como se apreende de uma frase dita na época: “A terra encharcada de sangue é terra boaxxv”.

O quarto ponto foi enfraquecer a legislação florestal: no período colonial, a Coroa proibia o corte de pau-brasil e de madeira de lei, bem como tinha o monopólio sobre a extração e venda dos mesmos. Ao início do século XIX, a extração madeireira, seja pela sua retirada em propriedades privadas, seja na interlocução com comunidades locais e indígenas, alimentava a indústria naval e as crescentes serrarias. Paradoxalmente, a dependência em relação à Europa era espantosa a ponto de o Rio de Janeiro importar mogno da Jamaica mais barato que os preços praticados das madeiras de leis locais, estas amplamente subsidiadas aos europeus. 
Outro interesse de exportação eram os animais e flores raras. A caça, tanto para alimentação dos posseiros como atividade de lazer das classes médias da época, extinguia rapidamente a fauna local, especialmente em áreas próximas às periferias urbanas.
A questão atual é a mesma de sempre…

Por Joaquim Alves da Silva Jr | Imagem: Jean-Baptiste Debret -Darcy Ribeiro  https://outraspalavras.net/sem-categoria/bolsonaro-a-dimensao-colonial/

Nenhum comentário:

Postar um comentário