domingo, 11 de novembro de 2018

Enem: o livro vermelho do PT; e as Embaixadas e Congresso Nacional servem para que?

O Enem de 2018 (as minhas observações tem como base a prova amarela) manteve a coerência com os exames anteriores. O panfletarismo petista continuou dominante. É como se Dilma Rousseff estivesse na Presidência. E o poste petista vencido a eleição presidencial. A cientificidade desapareceu. O conjunto do exame foi edificado para impor a visão de mundo petista. Sem qualquer preocupação de uma avaliação do conhecimento obtido no ensino médio.

Vamos às questões. Por que dois textos de Eduardo Galeano? Um deles, inclusive, em espanhol. Não há na literatura espanhola nenhum outro autor que mereça ser trabalhado no Enem? Além do que, no artigo de Galeano há uma crítica evidente do capitalismo (“No falta dinero: sobran ladrones/Los mercados gobiernan. Yo no los voté./Ellos toman decisiones por nosotros, sin nosotros/Se alquila esclavo económico”). Mas os organizadores do exame parecem fascinados pelo escritor uruguaio. Dedicaram a ele mais um um texto – este em português – tratando do futebol, como se não tivéssemos uma ampla literatura nacional sobre o tema. Pior ainda, com uma leitura absolutamente equivocada do futebol atual. A resposta considerada correta é de que os dirigentes “tornaram a modalidade em um produto a ser consumido, negando sua dimensão criativa.” Falta de criatividade? Do Barcelona, do Manchester City, de Lionel Messi, de Cristiano Ronaldo? O futebol é tão importante para estar presente em um exame desta importância (há mais uma questão tratando do futebol, a de número 19, neste caso para facilitar um pobre discurso feminista)?

A questão 31 é exemplar: “Acuenda o Pajubá. Conheça o dialeto secreto utilizado por gays e travestis. Com origem no iorubá, linguagem foi adotada por travestis e ganhou a comunidade. Nhaí, amapô! Não faça a loka e pague meu acué, deixe de equê se não eu puxo teu picumã! Entendeu as palavras dessa frase? Se sim, é porque você manja alguma coisa de pajubá, o dialeto secreto de gays e travestis.” O “dialeto” é considerado um patrimônio linguístico. Isso mesmo: um patrimônio linguístico! Alguém passa três anos no Ensino Médio para ter conhecimento do Pajubá e analisá-lo? Mantendo-se na esfera da ideologia de gênero, a questão 38 pede uma interpretação de uma passagem do singelo livro “Vó, a senhora é lésbica?” de Natália Polesso. A pobreza do texto é evidente. Polesso escreveu: “Senti um calor letal subir pelo meu pescoço e me doer atrás das orelhas.” Deixando de lado a pieguice, cabe perguntar se a literatura brasileira está presente na prova simplesmente para legitimar uma determinada leitura das relações pessoais. Onde estão os nossos clássicos? Qual a razão deste silêncio? Somente Graciliano Ramos e dois pequenos extratos de Guimarães Rosa foram lembrados, quase como uma concessão ao cânone conservador, diria, provavelmente, o examinador.

A “negritude” também deixou sua marca (questão 34). E para não perder a viagem, Gilberto Freyre é desqualificado na raiz da questão 45. A revista Carta Capital, que esteve a serviço do projeto criminoso de poder, feliz definição do ministro Celso de Mello para o mensalão petista, também mereceu ter um texto citado (questão 23). O presentismo – tão típico do autoritarismo – ocupou boa parte do exame como uma sinalização de negação do passado, como se a história e a produção de conhecimentos fosse um processo ultra-contemporâneo.
A Geografia é apresentada como uma ciência “imperialista.” A questão 57, citando uma passagem de Edward Said, induz a resposta de que cabe a ela a “catalogação de dados úteis aos propósitos colonialistas.” Seguindo este caminho, a questão 59 exuma uma passagem do livro de Pierre Clastres, “A sociedade contra o Estado.” O autor afirma que na sociedade tribal o chefe não tem poder, não tem autoridade, não coage ninguém, e não impõe obediência. Sua tarefa é de pacificar a comunidade. Tudo isso para, em seguida, o examinador afirmar: “O modelo político das sociedades discutidas no texto contrasta com o do Estado liberal burguês.” E aponta como resposta correta: porque se baseia na “intervenção consensual e autonomia comunitária.” Sendo assim, temos de retornar ao estágio tribal. E execrarmos o “Estado burguês.”

O regime militar merece, no campo da história – pois no da literatura se fez presente várias vezes – duas questões. A questão 62 enaltece o discurso de João Goulart proferido em 13 de março de 1964. Aponta que buscava a necessidade de “aprovar os projetos reformistas para atender a mobilização de setores trabalhistas.” os decretos assinados naquela noite eram absolutamente inconstitucionais pois dependiam, como o da reforma agrária, de uma emenda constitucional que alterasse a Carta de 1946. A questão 84 ataca o regime sem mencionar que 8 meses depois do texto citado – uma crônica do humorista Henfil – o Congresso Nacional aprovou uma ampla anistia política. Resta perguntar: o Enem mede o que?

Marco Antonio Villa é historiador.

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