quinta-feira, 29 de março de 2018

O ACELERADOR DE DEUS

Deus está morto! - converteu-se ao mesmo tempo na certidão de óbito da Idade da Fé e na declaração de autonomia da ciência laica. Só que Ele acaba de ressuscitar. E não por força de algum milagre ou arrebatamento místico, mas pelas mesmas mãos que O sepultaram: as dos cientistas.

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O deus hindu Shiva executando a Dança da Criação, tendo ao fundo as instalações do LHC, fronteira da França com a Suíça.

O fato ocorreu – na verdade, está ocorrendo – numa catedral enterrada 175 metros debaixo do chão, na fronteira da Suíça com a França. A igreja subterrânea tem a forma de um túnel circular de 27 km, custou quase 10 bilhões de euros, mais de 100 países participaram da sua construção e foi inaugurada em 2008. Ou melhor, foi colocada em funcionamento.
OK, não se coloca uma catedral em funcionamento, você nunca ouviu falar dela e, se ouviu, sabe que não é uma catedral, mas o maior acelerador de partículas do mundo: o Large Hadron Collider (LHC) ou Grande Colisor de Hádrons. O LHC é a coisa mais cara e complexa que o ser humano já construiu e um de seus objetivos é descobrir o que aconteceu imediatamente após o Big Bang, a grande explosão que deu origem ao Universo, 14 bilhões de anos atrás. E foi preciso construir o LHC porque os outros aceleradores de partículas são menos potentes e só conseguem revelar o que ocorreu milionésimos de segundo depois do Big Bang – e fatos essenciais para explicar o Cosmos aconteceram antes disso, ou seja, bilionésimos de segundo após o BUUUMMM!
Voltando o filme e apertando a tecla play, tudo era simples e previsível no mundo da Física até metade do Século XX, quando um punhado de cientistas com muita imaginação, dentre os quais Werner Heisenberg, Max Planck, Niels Bohr e Erwin Schrödinger, resolveu aprofundar os estudos de Einstein e investigar com mais minúcia o que acontecia dentro do átomo. E eles descobriram que lá dentro nada é simples ou previsível. Ao contrário, o interior do átomo é um microuniverso extremamente complexo, comandado por leis diferentes das que regem o mundão aqui fora e onde existem... bem... onde existem “coisinhas” que os pesquisadores batizaram de partículas subatômicas ou quanta. Também descobriu-se que há diferentes tipos de partículas – quarks, léptons, férmions e bósons, entre outras – e que elas têm diferentes funções, sendo responsáveis pela estrutura do Universo como a ciência o explica: o denominado Modelo Padrão. E chamaram isso de Mecânica Quântica, a parte da Física que estuda as coisas menores que o átomo.
Só que havia lacunas no Modelo Padrão, e a principal era a falta de uma partícula que conferisse massa à matéria produzida pelo Big Bang. Sem ela, o Modelo Padrão cairia por terra. A existência dessa partícula, do tipo bóson, foi sugerida em 1964 pelo físico britânico Peter Higgs, o que levou a partícula a ser nomeada Bóson de Higgs. Mas era preciso encontrá-la.
O problema é que apesar da sua importância – por dar existência concreta a tudo, ele foi apelidado “partícula de Deus” e “cimento da matéria” – o Bóson de Higgs teria uma vida tão curta, mas tão curta, mas tão curta, que aparecia e desaparecia antes de ser localizado pelos aceleradores de partículas. A solução seria projetar um acelerador poderoso o suficiente para flagrá-lo: o LHC.
Para flagrar o bóson fujão, porém, era preciso recriar o Big Bang, ainda que numa escala minusculíssima, em laboratório. Feixes de prótons seriam disparados em direções opostas dentro do túnel circular do LHC, um indo e o outro vindo, e sua velocidade aumentaria até próximo da velocidade da luz, quando os feixes colidiriam. Microbang! A expectativa dos cientistas era de que o bóson previsto pelo professor Higgs brotasse do choque e sorrisse para a câmera antes de sumir.
A fim de encontrar essa coisinha ínfima e de existência tão breve construiu-se a catedral que ressuscitou Deus. O projeto foi iniciado numa reunião de cientistas em Lausanne, na Suíça, em 1984, e depois de 24 anos de muito trabalho, em 2008, as primeiras partículas circularam no interior do LHC, ainda “pisando no freio”, só para ver se aquilo tudo funcionava.

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A catedral e o êxtase dos fiéis.
Abrir parêntese: “aquilo tudo” incluía 1.232 ímãs supercondutores de 35 toneladas e 15 metros de comprimento distribuídos ao longo do percurso do túnel, quatro detectores de partículas para monitorar as colisões, cada um do tamanho de um prédio de cinco andares e pesando 12.500 toneladas, centenas de quilômetros de fios unidos por 124 mil conexões e uma quantidade inimaginável de equipamentos e cálculos, sem falar em dezenas de milhares de computadores ligados em rede ao redor do mundo para processar dados que ocupariam 100 mil DVDs de 8,5 GB por ano. Ao atingir a velocidade máxima de 299.789 km/s ou 99,93% da velocidade da luz, os feixes de prótons percorreriam os 27 km do túnel 11.103 vezes por segundo. Vou repetir: 27 km percorridos 11.103 vezes num único segundo! E quando finalmente colidissem os feixes gerariam, num espaço microscópico, uma temperatura 100 mil vezes superior à do centro do Sol, isolados por um sistema de refrigeração próximo do zero absoluto – ao mesmo tempo o ponto mais quente e o espaço mais frio da galáxia. Fechar parêntese.
E funcionou.
Houve algumas interrupções e muitas críticas – especialistas chegaram a afirmar que o Microbang produzido no LHC destruiria a Terra, enquanto outros duvidavam que o tal bóson existisse. Mas os experimentos prosseguiram até que chegou 4 de julho de 2012. Nesse dia, um velhinho de 84 anos recebeu uma ligação que esperava há meio século.
– Professor Higgs?
– Yes.
– Aqui é da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, responsável pelo LHC. Acabamos de detectar uma partícula desconhecida cuja massa e características correspondem às do seu bóson. Congratulations!
Não sei o que o velhinho respondeu. Como bom britânico, deve ter agradecido formalmente enquanto seu coração acelerava feito feixes de prótons. Seus cálculos estavam corretos e a Humanidade dera mais um gigantesco passo para entender o Cosmos e – por que não? – o nosso papel dentro dele.
Oito meses depois, em 14 de março de 2013, concluiu-se que a nova partícula se comportava e interagia conforme o Modelo Padrão, indicando tratar-se efetivamente do Bóson de Higgs. E os estudos prosseguem, analisando agora as implicações da descoberta e adentrando outros mistérios científicos, como o da chamada Matéria Escura.
Mas, afinal, depois de toda essa explicação, por que insisto em chamar o LHC de catedral e afirmar que Deus ressuscitou ali?

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O bóson do professor Higgs fotografado pela primeira vez.
Não digo isso pelo apelido do bóson – “partícula de Deus” – ou por achar que uma revelação profética surgirá do Grande Colisor de Hádrons, mas porque tudo o que a Física tem descoberto, e em especial a Física Quântica, é matematicamente elegante. Por mais que a linguagem da ciência pareça hermética e confusa a nós, leigos, os cientistas vêm constatando a cada dia que tudo no Universo – do movimento da maior das galáxias à existência fugaz de uma partícula subatômica – se expressa conforme leis congruentes. E o acaso é incapaz de elegância ou congruência.
Como afirmou o físico americano David Böhm, “a pesquisa da matéria pode nos levar a perguntar se há algo além da matéria ou se a matéria é tão sutil que está além da matéria como comumente a conhecemos”. As duas hipóteses, o além da matéria e a sutileza, podem ser traduzidas como Deus – embora este Deus não tenha a ver com a imagem que se fez Dele mais do que a Lua tem a ver com queijo.
Amém, Namaste, Salaam, Shalom, Saravá, Bóson!

Por: MARCO ANTONIO BECK

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