domingo, 22 de abril de 2012

A falência múltipla dos órgãos públicos


Esse mar de lama pode nos purificar

Os corruptos ajudam-nos a descobrir o país. Há sete anos, Roberto Jefferson nos abriu a cortina do mensalão.
Agora, com a dupla personalidade de Demóstenes Torres, descortinamos rios e florestas e a imensa paisagem de Cachoeira.
Jefferson teve uma importância ideológica. Cachoeira é uma inovação sociológica.
Cachoeira é uma aula magna de ciência politica sobre o Sistema do país. Vamos aprender muito com essa crise. É um esplendoroso universo de fatos, de gestos, de caras, de palavras que eclodiram diante de nossos olhos nas últimas semanas. Meu Deus, que riqueza, que profusão de cores e ritmos em nossa consciência política! Que fartura de novidades da sordidez social, tão fecunda quanto a beleza de nossas matas, cachoeiras, várzeas e flores.
Roberto Jefferson denunciou os bolchevistas no poder, os corruptos que roubavam por "bons motivos", pelo "bem do povo", na base dos "fins que justificam os meios". E, assim, defenestrou a gangue de netinhos de Lenin que cercavam o Lula, que, com sua imensa sorte, se livrou dos manda-chuvas que o dominavam. Cachoeira é uma alegoria viva do patrimonialismo, a desgraça secular que devasta a História de nosso país. Sarney também seria "didático", mas nada gruda nele, em seu terno de teflon; no entanto, quem estudasse sua vida entenderia o retrato perfeito do atraso brasileiro dos últimos 50 anos.
Cachoeira é a verdade brasileira explícita, é o retrato do adultério permanente entre a coisa pública e privada, aperfeiçoado nos últimos dez anos, graças à maior invenção de Lula: a "ingovernabilidade".
Cachoeira é um acidente que rompeu a lisa aparência da "normalidade" oficial do país. Sempre soubemos que os negócios entre governo e iniciativa privada vêm envenenados pelas eternas malandragens: invenção de despesas inúteis (como as lanchas do Ministério da Pesca), superfaturamento de compras, divisão de propinas, enfrentamento descarado de flagrantes, porque perder a dignidade vale a pena, se a grana for boa, cabeça erguida negando tudo, uns meses de humilhações ignoradas pelo cinismo e pela confiança de que a Justiça cega, surda e muda vai salvá-los. De resto, com a grana na "cumbuca", as feridas cicatrizam logo.
O governo do PT desmoralizou o escândalo, e Cachoeira é o monumento que Lula esculpiu. Lula inventou a ingovernabilidade em seu proveito pessoal. Não foi nem por estratégia política por um fim "maior" - foi só para ele.
Achávamos a corrupção uma exceção, um pecado, mas hoje vemos que o PT transformou a corrupção em uma forma de governo, em um instrumento de trabalho. A corrupção pública e privada é muito mais grave e lesiva que o tráfico de drogas.
Lula teve a esperteza de usar nossa anomalia secular em projeto de governo. Essa foi a realização mais profunda do governo Lula: o escancaramento didático do patrimonialismo burguês e o desenho de um novo e "peronista" patrimonialismo de Estado.
Quando o paladino da moralidade Demóstenes ficou nu, foi uma mão na roda para dezenas de ladrões que moram no Congresso: "Se ele também rouba, vamos usá-lo como um Omo, um sabão em pó para nos lavar, vamos nos esconder atrás dele, vamos expor nosso escândalo por seu comportamento e assim, seremos esquecidos!"
Os maiores assaltantes se horrorizaram, com boquinha de nojo e olhos em alvo: "Meu Deus... como ele pôde fazer isso?"
Usam-no como um oportuno bode expiatório, mas ele é mais um "boi de piranha" tardio, que vai na frente para a boiada se lavar atrás.
Demóstenes foi uma isca. O PT inventou a isca e foi o primeiro a mordê-la. "Ótimo!" - berrou o famoso estalinista Rui Falcão. - "Agora vamos revelar a farsa do mensalão!" -, no mesmo tom em que o assassino iraniano disse que não houve Holocausto. "Não houve o mensalão; foi a mídia que inventou, porque está comprada pela oposição!" Os neototalitários não desistem da repressão à imprensa democrática...
E foi o Lula que estimulou a CPI, mesmo prejudicando o governo de Dilma, que ele usa como faxineira também das performances midiáticas que cometeu em seu governo. Dilma está aborrecida. Ela não concorda que as investigações possam servir para que o Partido se vingue dos meios de comunicação e não quer paralisar o Congresso. Mas Lula não liga. "Ela que se vire..." - ele pensa em seu egoísmo, secretamente até querendo que ela se dane, para ele voltar em 14. Agora, todo mundo está com medo, além da presidente. O PT está receoso - talvez vagamente arrependido. Pode voltar tudo: aloprados, caixas 2 falsas, a volta de Jefferson, Celso Daniel, tantas coisinhas miúdas... A CPI é um poço sem fundo. O PMDB, liderado pelo comandante do atraso Sarney, também está com medo. A velha raposa foi contra, pois sabe que merda não tem bússola e pode espirrar neles. Vejam o pânico de presidir o Conselho de Ética, conselho que tem membros com graves problema na Justiça. Se bem que é maravilhoso o povo saber que Renan, Juca, Humberto Alves, Gim Argello, Collor serão os "catões", os puros defensores da decência... Não é sublime tudo isso? Nunca antes em nossa História alianças tão espúrias tiveram o condão de nos ensinar tanto sobre o Brasil. A cada dia, nos tornamos mais sábios, mais cultos sobre esta grande chácara de oligarquias. E eu estou otimista. Acho que tudo que ocorre vai nos ensinar muito. Há qualquer coisa de novo nesta imundície. O mundo atual demanda um pouco mais de decência política. Cachoeira, Jefferson, Durval Barbosa nos ensinam muito. Estamos progredindo, pois aparece mais a secular engrenagem latrinária que funciona abaixo dos esgotos da pátria. A verdade está nos intestinos da política.
Mas o país é tão frágil, tão dependente de acasos, que vivemos com o suspense do julgamento do mensalão pelo STF.
Se o ministro Ricardo Lewandowski não terminar sua lenta leitura do processo, nada acontecerá, e a Justiça estará desmoralizada para sempre. 
Por: Arnaldo Jabor – O GLOBO 17 Abr 12

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