sábado, 14 de junho de 2008

Gritos no porão


No dia 1° de julho de 1969, em agradável coquetel de drinques e salgadinhos, com a presença de autoridades civis e militares, foi inaugurada em São Paulo a Operação Bandeirante (Oban). Seu objetivo: destruir os grupos de esquerda que atuavam no país. Financiada por empresários ligados à FIESP e banqueiros que sentiam seus interesses ameaçados, a Oban agregou militares e membros de todas as forças policiais em um passo decisivo para o endurecimento do regime militar.

  • Encerrada a fase das grandes passeatas estudantis e das greves operárias anteriores ao Ato Institucional nº 5 (13 de dezembro de 1968), surgiam novas formas de luta contra o regime, promovidas por organizações clandestinas de esquerda. Algumas delas defendiam as ações armadas; outras não, mas todas tinham em comum a oposição ao governo e a defesa do socialismo como sistema político. Embora o novo órgão repressivo fosse composto por efetivos de origem policial e contasse, em seus quadros, com membros das três forças armadas, eram os oficiais do Exército que o comandavam. A convivência entre essas duas categorias – militares e policiais civis –, dentro da mesma Oban, nem sempre era fácil. Os policiais achavam que os militares eram brutos e inexperientes em investigações. Estes, por sua vez, consideravam os policiais corruptos e incapazes. Por que então reunir em um só órgão indivíduos com estilos de trabalho tão conflitantes? A explicação encontra-se na maneira pela qual o governo militar encarava a oposição naquela época.
    O poder constituído lutava, então, contra um novo tipo de adversário: o “inimigo interno”, entidade nascida no âmbito da Guerra Fria, quando o bloco capitalista (liderado pelos EUA) opunha-se ao bloco socialista (liderado pela União Soviética) e uma nova modalidade de guerra, a “guerra revolucionária”, colocava em campos opostos cidadãos de um mesmo país. O "subversivo", ou "terrorista”, era considerado um elemento extremamente perigoso. Na visão do Exército, agia de “forma insidiosa” com o objetivo de desestabilizar, com suas “táticas traiçoeiras”, o regime militar. Tal perspectiva justificava a utilização de variados métodos de tortura nos interrogatórios. Ao capturar um suspeito, era preciso obter dele, o mais rápido possível, informações que levassem a outros militantes, estabelecendo-se a partir daí uma cadeia de prisões sucessivas.
    A Oban especializou-se na captura e no interrogatório de suspeitos de subversão. Os agentes que lá trabalhavam seguiam uma orientação muito distinta da estabelecida em suas unidades de origem. Não podiam usar corte de cabelo militar e nem circular fardados. Utilizavam codinomes, para confundir as pessoas e impedir que fossem identificados. Deixavam seus cabelos e barbas crescerem e vestiam-se à paisana para que pudessem infiltrar-se em ambientes freqüentados por militantes de esquerda. Suas atividades eram sigilosas até para os familiares. Circulavam pela cidade em carros de “chapa fria”, isto é, com registro falso, razão pela qual muitas vezes eram detidos pelos próprios colegas, que os confundiam com os suspeitos. Justificava essas medidas o fato de estar diante de um inimigo incomum e, por isso, ter de agir como ele, de forma não convencional.

    Ainda que lançando mão de meios irregulares, ilegais e quase sempre brutais, a Oban obteve êxito na sua missão. Em pouco tempo, as organizações de esquerda foram sendo desarticuladas e destruídas uma a uma. Com base na experiência paulista, o Exército decidiu não apenas consolidar sua presença e atuação, mas também, mudando o nome da organização, expandir suas atividades a outras capitais do país. Entre 1970 e 1974, foram instituídos os Destacamentos de Operações de Informação – Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), (que substituíram a Oban), em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Brasília, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador, Belém, Fortaleza e Porto Alegre. Ao DOI cabia investigar, prender, interrogar e analisar as informações. O CODI, dirigido pelo chefe do Estado-maior do Exército, era incumbido de planejar, controlar e assessorar as medidas de defesa interna, incluindo a "propaganda psicológica" – considerada também como importante arma de combate à guerra revolucionária. Sua principal função consistia em evitar que houvesse duplicidade de esforços, coordenando as ações dos diversos órgãos repressivos.
    Os interrogatórios do DOI duravam noite e dia. Três turmas, compostas por seis agentes sob o comando de um oficial, revezavam-se em turnos de 24 horas, com 48 horas de folga. O ritmo de trabalho era intenso, conforme o relato de um ex-agente: "Eu ficava lá todo o tempo, não tinha vida pessoal, tudo o que fazia se relacionava à minha atuação no DOI”. O turno começava às oito horas da manhã, quando se dava a troca das equipes, e só terminava às sete horas do dia seguinte. Quem orientava os interrogatórios era a Sub-seção de Análise de Informações. Seus agentes tinham por missão ler atentamente os depoimentos e cotejá-los com informações recebidas de vários órgãos.
    Um general chegou ao cinismo de afirmar, numa entrevista, que o nome do órgão era muito apropriado, porque "DOI" evoca dor. Embora não admitida oficialmente, a tortura era uma prática rotineira dentro do DOI. Os agentes aplicavam os castigos de forma profissional e “científica”. Médicos e enfermeiros avaliavam as condições físicas do interrogado, para saber se podiam sofrer novas sevícias. Os torturadores, por sua vez, tinham de se enquadrar a determinado um determinado perfil psicológico. Tinham de ser necessariamente violentos, mas sempre mantendo certa dose de calma e frieza, pois ao contrário perderiam a "superioridade" em relação ao interrogado. Enquanto os torturadores procuravam arrancar a "verdade" dos presos políticos, os agentes de análise iam avaliando, como se juntassem as peças de um quebra-cabeças, o teor das informações obtidas, para prender outro suspeito ou “estourar” um novo “aparelho”, como eram chamados os locais de moradia ou de encontros utilizados pelos ativistas de esquerda.
    Às vezes, um e outro interrogado não resistia aos excessos do torturador e morria. Não podendo admitir que presos políticos perdessem a vida em dependências do Exército, os agentes do DOI apelavam para falsas versões: "morte em tiroteio", "morte por atropelamento", "suicídio" ou "tentativa de fuga" eram as mais comuns. Como esses argumentos foram ficando desgastados e pouco críveis, recorreu-se ao expediente do “desaparecimento”. A passagem do preso pelo DOI era oficialmente negada, e seu corpo enterrado como indigente, numa vala clandestina.
    A Ação Libertadora Nacional (ALN), o Partido Comunista Revolucionário Brasileiro (PCBR), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a Vanguarda Armada Revolucionária (VAR Palmares), o Partido Operário Comunista (POC) e muitas outras entidades de esquerda tiveram militantes assassinados. Mas, à medida que essas organizações eram desmanteladas, outros alvos tinham de ser estabelecidos para justificar a necessidade permanente de um órgão dessa natureza. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) mantivera durante o regime militar uma postura pacífica. A perseguição aos seus integrantes deu-se dentro de uma conjuntura de disputa interna dos militares entre os setores da "linha dura" – defensores do endurecimento do regime – e o governo do general Ernesto Geisel, que defendia uma abertura política "lenta e gradual".
    Alguns dirigentes do partido já tinham sido assassinados em centros clandestinos de tortura, mas a opinião pública pouco soube a respeito. Como a conjuntura política mudou, o mesmo não ocorreu com a morte do jornalista da TV Cultura Vladimir Herzog, no dia 25 de outubro de 1975, na sede do DOI, em São Paulo. O episódio provocou grande comoção nos meios intelectuais do país, fazendo eclodir uma crise entre o governo Geisel e os órgãos de repressão. Pouco tempo depois, um operário chamado Manoel Filho foi assassinado nas mesmas circunstâncias, o que  levou à deposição, pelo presidente Geisel, do comandante do II Exército, general Ednardo D'Ávila Mello. Tal medida não impediu a ocorrência da chamada "chacina da Lapa”, em dezembro de 1976, quando três dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) foram assassinados durante uma operação conjunta realizada pelo DOI e outros órgãos da repressão.
    Após esse episódio, embora seus agentes continuassem interrogando e torturando presos políticos, não se registraram mais vítimas fatais na sede do DOI paulista. Aos poucos, com o processo de redemocratização, o órgão foi sendo esvaziado de suas funções, com seus agentes sendo transferidos para outras unidades policiais ou militares. As atribuições do órgão foram em certa medida incorporadas pela Sub-seção de Operações do II Exército. No final do governo do general João Batista Figueiredo, o DOI foi oficialmente extinto. Alguns dos agentes passaram a promover, a partir daí, de forma clandestina mas muitas vezes com apoio de  setores militares, atentados terroristas contra a população civil e entidades afinadas com os princípios da liberdade e dos direitos humanos, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Era uma tentativa desesperada de frear a abertura política, mas não tiveram êxito. Embora tenham vencido a batalha contra as esquerdas, não conseguiram impedir a retomada do projeto democrático, entrando para a história como personagens macabros de um tempo obscuro, cujas feridas ainda hoje não cicatrizaram inteiramente.
    Mariana Joffily é doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com a tese No centro da engrenagem: os interrogatórios da Oban e do DOI de São Paulo (1969-1975).
    Os arquivos da repressão
    Não se conhece a existência de arquivos específicos da Operação Bandeirante ou do DOI-CODI, embora esses órgãos tenham produzido farta documentação. Porém, é possível ter acesso aos documentos enviados pela Oban e pelo DOI ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) paulista. A esse organismo, que existia desde 1924, cabia a realização do interrogatório oficial – a partir dos dados já fornecidos pela Oban – e a montagem do inquérito a ser enviado à Justiça Militar. A série Dossiês (1940-1983), que compõe o acervo do DOPS São Paulo, contém, entre outros, o Dossiê 50-Z-9, constituído de 236 pastas. Nestas, encontra-se uma variedade muito grande de documentos, oriundos dos mais diversos órgãos de informação e repressão, arquivados dentro de uma lógica difícil de reconstituir. Essa miscelânea de documentos de toda ordem – "pedidos de busca", "fichas de antecedentes políticos", "boletins do SNI", "informes" (informação bruta), "informações" (informação confirmada), "fichas individuais de identificação de presos", relatórios, interrogatórios preliminares, recortes de jornal e outros – comprova a intensa troca de notícias e dados entre as mais diversas esferas do sistema repressivo.
    Saiba mais - Bibliografia:
    AQUINO, Maria Aparecida de; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Lemes de; SWENSSON JR., Walter Cruz (orgs.). A alimentação do Leviatã nos planos regional e nacional: mudanças no DEOPS/SP no pós 1964. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo/ Imprensa Oficial, 2002.
    D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (orgs.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
    FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar. Espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.
    GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
    Saiba mais - Filmes:
    Pra Frente, Brasil – Roberto Farias – 1983
    Que bom te ver viva – Lucia Murat – 1989
    Saiba Mais - Sites:
    Desaparecidos políticos: www.desaparecidospoliticos.org.br
    Ditadura militar: www.gedm.ifcs.ufrj.br
    Grupo Tortura Nunca Mais RJ: www.torturanuncamais-rj.org.br
    Terrorismo Nunca Mais (site de ex-agentes de repressão): www.ternuma.com.br

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